QUEM TEM ARMA DITA A LEI
KÁTIA CATULO
Armas e jovens. Nas urbanizações sociais da periferia de Lisboa, basta querer para ter. Arranjam-se por meia centena de euros e servem para sobreviver dentro e fora do gueto. Quem anda armado tem tudo - atitude, respeito e dinheiro - dizem os miúdos que ali cresceram. A delinquência juvenil é uma linha recta. Começa com as navalhas na escola primária, continua nas ruas do bairro com as armas de baixo calibre e termina nos assaltos planeados com caçadeiras e 'shotguns'. É um caminho que não tem retorno, até porque ninguém lhes cobra nada. No mundo do crime vale tudo. Menos "chibar" os sócios do bairro
"Fiquei um gajo frio de tanto levar no lombo"
"Amanhã há desforra." Rola do Gueto leu a mensagem no telemóvel e, na noite seguinte, apareceu na estrada velha da Portela de Carnaxide (Oeiras). Juntou-se aos outros "40 e tal" miúdos do bairro, que trouxeram barras de ferro, tacos de basebol, facas de serrilha ou pedras da calçada. Esconderam tudo nos casacos e nas calças e seguiram para Miraflores. Estavam em vantagem e não houve hipótese. "Chegámos, rebentámos com todos e bazámos."
Foi um combate rápido e serviu para mostrar que quem se mete com um deles mete-se com todos. É uma lição que os "sócios de Miraflores" aprenderam à bastonada. Na véspera, o Careca e o Papagaio foram atacados à "cara podre" na entrada do Pingo Doce. Só porque pisaram território inimigo. Regressaram a casa humilhados, mas voltaram 24 horas mais tarde com a "tropa toda" e prontos para o street fight .
A Portela de Carnaxide dita a lei. Nem a "bófia" mete lá os pés. Sempre que entram no bairro são corridos à pedrada: "A gente esconde-se no canijo e fica à espera deles", conta o jovem de 18 anos. É a melhor diversão que qualquer um deles pode ter. Mal avistam um "pipoca", começa a chuva de calhaus: "Há uns anos até quiseram abrir aqui uma esquadra, mas acabaram por desistir."
Rola do Gueto nunca foge de uma briga. Aos dez anos saía de casa com uma navalha no bolso: "Podia ser atacado e tinha de estar prevenido." Chegou até a levar a pistola Magnum do irmão mais velho para a escola, mas não teve coragem de mostrá-la: "Era puto e tinha medo dela." Ficou escondida na mochila para o caso de ser necessário impor respeito.
Só com 17 anos é que teve uma arma só dele. Falou com um "sócio", que falou com outro "sócio" e que por sua vez falou com mais um "sócio". Mas o negócio, mesmo com tantos intermediários, era bom. "Uma 6.35 mm é a mais barata de todas, mas é arma de mulher." O melhor é uma shotgun automática de oito tiros, mas para isso é preciso arranjar de uma penada oito mil euros. Ou então uma .8 mm Mauser, que começa nos 400 euros - "se estiver muito usada" - e acaba nos 800, "novinha em folha". São as que "mais circulam por aí" a par das Magnum .32 mm.
Iniciação em armas
A 6.35 mm é a arma de iniciação. "Encontra-se em todo o lado e chega a custar entre 50 e 200 euros", explica Rola do Gueto. Não precisa de ser verdadeira. Basta entrar numa loja, comprar uma pistola de alarme e pedir a quem sabe para transformá-la numa a sério - perfurar o casquilho com um berbequim e fazer uma abertura dos tais 6.35 mm: "Tem de ser um perito a fazê-lo", avisa Rola. Um trabalho mal feito pode ser fatal - a arma explode na cara ou então desvia a trajectória da bala.
Foi com uma 6.35 mm que Rola entrou aos 17 anos no mundo dos profissionais. Apontou a arma aos lojistas de Odivelas, de Carnaxide ou do Dafundo para roubar plasmas, portáteis, ténis, blusões, fios, anéis de ouro e tudo o que os mais velhos do bairro já tinham. "Só da primeira vez é que tive medo", conta. Mas esteve sempre amparado pelos veteranos. A partir daí "foi sempre a abrir". Rola teve sorte. A "bófia" nunca chegou perto dele. É rápido a desaparecer e foi por isso que a polícia tinha uma alcunha especial para ele: "Chamam-me Rola do Gueto porque salto muros, carros e telhados em menos de nada." É ágil como um pássaro dos subúrbios.
Os agentes da PSP nunca o apanharam, mas o pai dele sim. "Foi muito pior", garante. Deu-lhe uma "coça das grandes" no meio da rua porque viu o filho a tentar roubar um carro estacionado perto do bairro. E só parou de "arriar" quando Rola fingiu estar desmaiado no chão da cozinha. O correctivo adiantou pouco. Enquanto viveu com os pais, nem um nem outro conseguiram pôr-lhe o freio.
Rola desistiu de estudar ao 8.º ano e não lhe cobraram nada. Desapareceu de casa durante dias e sempre que regressou "houve porrada", mas nenhuma pergunta: "Um dia saí de vez e fui viver com os meus tios." Ninguém foi atrás dele. Há "uns meses" saiu do bairro para morar fora do concelho de Oeiras e ficar ainda mais longe do casal, que há "muito tempo já não chama de pais". Mudou de alcunha. Agora usa o nickname apropriado para um rapper e garante que já não se mete em confusões. Chegou a um ponto em que era rotina pura: "Saía de casa e dava porrada. Dava porrada e ia para casa. Cansei daquela vida e arranjei um trabalho a sério numa serralharia", garante Rola do Bairro.
Regras do bairro
Russo aprendeu depressa que, no Centro Educativo de Castelo Branco (um colégio de reinserção social para onde vão os rapazes que têm, cedo, problemas com a justiça de menores), as regras do bairro continuam a valer - os que são de Lisboa de um lado; os do Porto do outro; e ciganos à parte. "Eles não se metiam connosco e ninguém se metia com eles", explica o miúdo de 17 anos, que há um ano e meio foi apanhado a roubar dentro de uma loja de material informático. Nunca houve misturas nem confusões entre os rapazes do Norte e do Sul.
Jogou à bola e à batota, fingiu que estudou e ouviu rap no pátio com os amigos - Eminem, 50 cent, Snoop Dog, Nelly, 2Pac. "Música de drogados", atiçou um dia o monitor, que se fartou da "barulheira" e desligou à bruta a aparelhagem. Foi o suficiente para provocar o motim. "Partimos tudo o que estava à frente - mesas, cadeiras, janelas, arcas e frigoríficos do refeitório."
Foi preciso um "batalhão" de guardas para acabar com a fúria à cacetada. Russo e mais uns quantos serviram de exemplo. "Enfiaram-me no quarto durante oito dias." Uma cela sem janela, com uma cama, uma sanita e uma lâmpada de tecto sem interruptor. Os primeiros dias foram os piores: "Não ter nada para fazer atrofia um gajo."
A luz desliga-se e a cabeça fica cheia com "cenas bué maradas". Por alguns minutos, pensou que tinha atravessado de vez a fronteira: "Um dia cheguei mesmo a passar-me para o outro lado." Viu as paredes a mexerem-se. Encolhiam-se cada vez mais mas, antes de ficar esmagado, deu uma cabeçada na porta blindada que lhe abriu o sobrolho e o trouxe de novo à cela.
Nos dias a seguir foi bem diferente. Forçou o sono e conseguiu dormir horas a fio. Por vezes, nem para comer acordava. Treze meses depois, Russo teve uma segunda oportunidade. Voltou ao Casal da Boba, na Amadora. Pensou que ia "atinar", mas é difícil entrar na linha quando os outros não ajudam. Três semanas após regressar a casa, o Mocho desafiou-o a participar num "esquema", mas ele começou por recusar. "Vai ser um trabalho limpo", insistiu o amigo. Russo entrou no automóvel. Passaram ainda pelo Parque Aventura e apanharam o Picareta. Só pararam junto a uma farmácia da Malveira (Mafra) e esperaram até o último cliente sair.
O Mocho ficou no carro com a chave na ignição e o motor a trabalhar; Picareta puxou a .9 mm da cintura e Russo foi atrás dele. Do outro lado do balcão, o farmacêutico deu tudo o que a dupla pediu: "1700 euros, que quando chegámos a casa dividimos pelos três", conta. Todo o dinheiro guardado em três caixas registadoras. O Mocho afundou o pé no acelerador e o trio nunca mais foi visto por aquelas bandas: "Não foi preciso disparar nem um bago", recorda o rapaz. Nem pensar muito. Quem hesita "fode tudo". Homem que pensa muito antes de agir é "cagão". Mais tarde ou mais cedo morre com um "balázio nos cornos".
Das duas vezes em que Russo foi apanhado não houve perdão. Algemaram-no, conduziram-no à esquadra e encheram-lhe de porrada, assegura o adolescente - primeiro, um "bófia" de cada vez e, depois, todos ao mesmo tempo: "É assim que os filhos da puta se divertem." E da última vez nem estava a fazer nada de especial, garante. Entrou no carro do amigo para ir até ao Lumiar jogar à bola com os miúdos do Bairro da Cruz Vermelha.
Pararam no semáforo de Alvalade e Russo viu um carro-patrulha da PSP atrás deles. Deu um toque ao companheiro: "Ele ficou tão nervoso que, em vez de parar, carregou no acelerador", recorda abafando as risadas. As luzes e a sirenes acenderam e foi o suficiente para penarem quatro horas na esquadra. Revistaram o carro e encontraram uma ".9 mm e uma 6.35 mm" debaixo do banco: "Não era para usar", justifica Russo. A não ser que o jogo azedasse. Em território alheio, nunca se sabe como é que a noite pode acabar.
Na Damaia, por exemplo, o miúdo não se atreve a aparecer sozinho. Há dias houve "espiga" na discoteca Matiné, mas ele nem sabe muito bem o quê ou como aconteceu. Estava longe dali, mas é como se tivesse sido com ele: "Foi uma cena de damas." E, quando há miúdas pelo meio, demora ainda mais tempo a resolver. Por isso, o Casal da Boba não vai à Damaia: "E a Damaia também não vem ao Casal da Boba."
Dentro do bairro é diferente: "Não há chibos", dizem. E a polícia não tem grande margem de manobra. Sempre que há uma rusga ou um mandado de juiz para cumprir, a informação circula à velocidade de um rastilho de pólvora. Curto. Cada zona está vigiada pelos "batedores" do bairro, que dão o alerta - "acabou de passar uma carrinha dos 'pipocas' para o Casal de São Brás", avisam pelo telemóvel. Toda a gente fica a saber e adopta os procedimentos necessários. Besuntam-se as armas com gordura para desorientar o faro dos cães e esconde-se tudo o que é para esconder. Se não houver tempo, atira-se pela janela: "O que está no chão não é de ninguém."
Irmãos de guerra
Relatos de "stress com os bófias" são como as armas de fogo. Encontram-se em todas as esquinas das urbanizações sociais da região de Lisboa. Cada episódio é como um cromo de caderneta - guarda-se para partilhar com os que vivem dentro e fora do bairro. Black Shadow já coleccionou muitos. Da última vez, foi apanhado numa rusga e levaram-no numa carrinha com outros miúdos do Prior Velho, em Sacavém (Loures). "Ena pá, trouxeram para cá o zoo todo", ouviu dos polícias quando entrou algemado na esquadra.
"Rebentaram-me todo", conta. Levou socos nas têmporas, bastonadas nas costelas, bofetadas na "fronha". Apanhou de pé, sentado, caído e de cócoras: "Vinha de uma directa." Saiu de uma festa no Porto e foi "caçado" mal entrou no bairro: "Não estava a fazer nada de mal, só não tinha os documentos comigo", garante o jovem, que completa 22 anos em Outubro. Queriam que ele "se chibasse", mas não abriu o "bico". Nunca na vida trairia os companheiros do Prior Velho: "Se os meus tropas precisarem de mim, estou sempre disposto." Basta dizer hora, local e quanto é que pode facturar.
Falar sobre os "esquemas" em que participou é que é mais difícil. Black Shadow já não é um puto. A idade tornou-o cauteloso. Nem "à porrada" arrancam o que quer que seja dele. E quanto mais "apanhar no lombo", mais corajoso fica: "De tanto levar tornei-me num gajo frio, sem sentimentos." Ganha-se raiva aos agentes da PSP e promete-se vingança, na primeira oportunidade: "Os bófias têm sete vidas; os blacks têm oito balas" é o lema que todos eles repetem.
Há "fezadas", no entanto, que o rapaz do Prior Velho confessa não conseguir fazer. Não se mete em "facadas" porque não é ao estilo dele. Falta-lhe coragem para enterrar um "chino " na carne de quem quer que seja: "A minha onda é só pistolas." À distância, sem contacto e sem esperar para ver o estrago. E é por isso que Black Shadow e Red Light são "irmãos de guerra", mas cada um tem o seu "business". O sócio da Zona J, em Chelas (Lisboa) é que é "doido dos cornos". Se for preciso sujar a mão para "limpar o sebo" de alguém, faz. Sem tremer nem hesitar, garante Black Shadow. E Red Light concorda com a cabeça.
Crescer depressa
O grupo de Fábio não passa de um bando de "caixas baixas" - têm entre 12 e 16 anos, roubam telemóveis aos miúdos ainda mais novos do que eles e apanham porrada de todos os outros. Também os veteranos tiveram de passar por isso. Roubavam fruta dos minimercados, implicavam com os mais fracos e queriam crescer depressa para ganhar respeito.
Fábio, Alex, Sandro ou Feitor vivem algures em Loures e não estão dispostos a passar pelo mesmo: "Os mais velhos pensam que podem abusar, mas nós não papamos disso", avisam. É preciso "atitude". Falar alto e enfrentá-los de peito aberto sempre que se justificar. Na maioria das vezes, arriscam a apanhar umas boas bofetadas, mas também dão uns quantos socos em troca. E, acima de tudo, vão ganhando reputação. Pode ser que um dia até os convidem a participar num "esquema da pesada". E pode ser também que lhes abram caminho para terem armas de gente grande - uma shotgun, uma Magnum ou uma Mauser.
Por agora não têm nada: "Se quiséssemos conseguíamos uma 6.35 mm", explica Fábio. Essas estão em todo o lado. Passam de mão em mão. Emprestadas ou vendidas. Com as de grande calibre é diferente: "Só as arranjamos com a ajuda dos mais velhos", confessa o miúdo de 14 anos. Enquanto esperam pela vez deles, vão trabalhando para a fama: "Quando aparecemos na praceta, os mais novos refundem-se todos." Dizem ser o terror das crianças, dos comerciantes e dos motoristas dos autocarros.
A parte de trás de uma camioneta é sempre deles. Ninguém ousa sentar-se ao lado dos rufias que bebem "litrolas", improvisam beats do rap e esticam as pernas em cima dos bancos. Os outros míúdos atravessam para o outro lado e encontram caminhos alternativos para não se cruzarem com eles. Estão fartos de serem roubados. De chegarem a casa sem dinheiro, telemóvel ou "caps" da Nike ou da Lacoste. Nem os lojistas lhes fazem frente. Entram aos bandos nas lojas e mercearias; abrem as arcas e tiram os gelados; vão às prateleiras das bebidas e levam cervejas; passam pelos corredores e derrubam tudo. Ninguém faz nada. A não ser esperar que saiam dali depressa para poder limpar os estragos.
Ganzas, "damas" e cervejas não é tudo o que eles querem da vida. Entrar num banco e apontar uma arma aos que estão ao balcão é coisa que "de vez em quando" também vai passando pela cabeça deles. "É perigoso", admitem. "É preciso pensar e ver se vale mesmo a pena." Sabem que é um caminho sem volta. Mas vão adiar a decisão até chegar a altura: "Pode ser que sim e pode ser que não", diz Fábio, encolhendo os ombros. Há que esperar e ver o que acontece.
ALGUÉM NO SEU PERFEITO JUIZO ALGUM DIA ACREDITA QUE SÃO ESTES GAJOS QUE IRÃO PAGAR AS PENSÕES DOS VELHINHOS?
QUAL A LÓGICA DA BATATA DESTES POLÍTICOS DE MERDA QUE ACEITARAM QUE OS SEUS ELEITORES FOSSEM CORRIDOS DE ÁFRICA E SEM BENS E AGORA PROMOVEM COLONIZAÇÕES DESTE CALIBRE?COMO SE DEVE CLASSIFICAR ESTA ACÇÃO? PARA MIM É TRAIÇÃO...
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