Justiça desprestigiada
04-Nov-2008
António Cluny, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, lamenta:Os portugueses têm hoje menos qualidade de vida e menos efectividade nos serviços públicos ao seu dispor»; «As reformas penais contribuíram, significativamente, para o sentimento de insegurança colectiva»; «Há um bloco de interesses políticos e económico-corporativos que se assume como legítimo e exclusivo detentor e usufrutuário do regime e se julga acima da moral e das leis que governam o comum dos cidadãos»; «A Justiça está hoje mais desprestigiada, por isso menos capaz de desempenhar a sua função».
DIABO - A um ano do final desta legislatura que balanço faz do estado do País?
ANTÓNIO CLUNY - São tempos difíceis para o País e para a área da Justiça, a que conheço melhor. Não pondo em causa a necessidade de reformas, que todos, a começar pelos magistrados, reconhecem, a Justiça, como em geral todo o serviço público, está hoje mais desprestigiada e por isso menos capaz de desempenhar a sua função. Para além do endémico e nas circunstâncias actuais um pouco irritante optimismo oficial, a verdade é que, sem esquecer que as coisas já antes não andavam boas, os portugueses têm hoje menos qualidade de vida e menos efectividade nos serviços públicos ao seu dispor.
Olhando para o País e tendo em conta a crise económica acha que os portugueses estão melhor hoje que em 2005?
Tudo depende dos portugueses a que nos queiramos referir. Alguns, como os estudos internacionais referem, estão cada vez melhor, apesar da crise. Os outros, talvez a maioria, com ou sem crise, estão pior. A crise, como todos sabemos, tem costas largas.
Falando de Justiça. Que avaliação global faz da reforma da Justiça implementada pelo Governo PS?
Avançaram-se leis cujos efeitos, de facto, não provaram. Umas porque não foram suficientemente estudadas, outras porque, paradoxalmente ou talvez não, se quis mesmo que produzissem os resultados obtidos. Mas isso são opções políticas. Por outro lado, porque não foi possível estabelecer as pontes necessárias entre o legislador, a academia e os aplicadores, há hoje menos fluidez nos procedimentos, menos segurança na doutrina e na jurisprudência, menos ânimo nos magistrados e funcionários, piores e, nalguns casos, mais confusos meios processuais, mais desordem nas estruturas e menos rumo nas atribuições das instituições judiciárias.
Aquele velho chavão de que os cidadãos e a Justiça continuam de costas voltadas porque a segunda não dá resposta aos primeiros em tempo útil é verdadeiro?
Por muito que nos custe, é verdadeira. Mas também parece que tudo se fez e faz para que assim aconteça. Tenho pena que não se realizem estudos sobre o conjunto de atribuições e o volume de trabalho processual e horas em julgamento dos magistrados e funcionários de Justiça portugueses, comparando-os com os de outros serviços e com os de outros países. Talvez assim se percebesse onde se situam as causas de a Justiça não responder como devia aos problemas que lhe endossam. Saber-se-ia, de facto, onde estão as causas e os responsáveis. Muitos ignoram e outros esforçam-se por esquecer as particularidades do nosso sistema de Justiça, a complexidade das nossas leis, o número de recursos que elas permitem, a falta de meios de apoio que realmente existe. Em todo o caso, apesar dos vícios reais, as estatísticas internacionais colocam, comparativamente, a Justiça portuguesa num lugar honroso, mas isso nunca é referido nem pelos detentores do poder político nem pelos média que aqueles influenciam, pois parece não interessar a ninguém ter uma Justiça prestigiada aos olhos dos cidadãos.
O Ministro da Justiça diz que houve mais desburocratização. Concorda? Ou ainda há muita burocracia nos tribunais portugueses?
Alguma houve. Contudo, a que resta e a que entretanto foi inventada - veja-se a Lei da Política Criminal - ainda é tanta que chega para que o que mudou não se note.
«Não sou perito em propaganda»
Uma das primeiras medidas do Governo foi mexer nas férias judiciais. Hoje está provado que a produtividade dos tribunais aumentou depois da alteração das férias judiciais?
Não sou perito em propaganda.
Como olha para a reforma penal?
Com pena e algum desespero. Podíamos, se realmente quiséssemos, ter um dos melhores sistemas penais do mundo.
Quais as consequências das alterações às leis penais?
Mais dificuldade no desenvolvimento das investigações, mais complexas e ligadas à criminalidade económica, financeira e do Estado. As mesmas dificuldades de sempre na decisão rápida e justa dos grandes processos e nos julgamentos tempestivos da pequena criminalidade.
Há quem considere que as alterações penais estão directamente relacionadas com o aumento da grande criminalidade que se tem registado no País nos últimos meses. Podemos fazer este juízo?
O único juízo que, com honestidade, até agora, podemos fazer é o de que o sistema e as reformas actuais contribuíram, significativamente, para o sentimento de insegurança colectiva, o que é diferente.
Quais são as causas, na sua opinião, desta onda de violência que se tem registado?
As causas principais são, necessariamente, sociais e económicas.
Mas existem causas políticas, culturais e morais ligadas à degenerescência da democracia, das instituições da República e à diminuição da legitimidade e autoridade dos seus servidores. Essa é uma perda que foi politicamente querida e construída por uma aliança de interesses de diversa índole e que beneficiou de uma expressão mediática acrítica.
Refere-se a quê?
Refiro-me a um bloco de interesses políticos, económicos e económico corporativos que se assumem como legítimos e exclusivos detentores e usufrutuários do regime e se julgam acima da moral e das leis que governam o comum dos cidadãos.
Falando da magistratura do Ministério Público. Como caracteriza actualmente o MP?
Os magistrados do Ministério Público não são diferentes dos outros cidadãos e dos outros servidores da causa pública. Debatem-se, por isso, hoje, com as mesmas dificuldades e as mesmas dúvidas sobre o sentido do seu destino e a utilidade actual da sua função. Isto é, perguntam-se, afinal, o que se pretende deles. Alguém quer realmente, para além das tiradas propagandísticas, que o Ministério Público funcione como um órgão de justiça com autonomia verdadeira e servido por autênticos magistrados obrigados a actuar nos processos com objectividade e de acordo unicamente com a lei? É portanto um corpo em crise de identidade e que se julga mal amado, mesmo ou sobretudo, quando age, em geral, na convicção de defender o bem comum.
Quais os problemas que o afectam e, aos quais, o poder político não tem sido capaz de dar resposta?
Os problemas que afectam o Ministério Público são de duas naturezas. De um lado, funcional: quer dizer, problemas relacionados com os meios de exercício das suas atribuições. Isto tem a ver com competências processuais, com a formação permanente, a especialização - e a sua falta - com meios informáticos, com meios auxiliares de investigação, com a organização do trabalho etc. De outro, político e estatutário; o que significa a dificuldade actual de assegurar com efectividade das garantias constitucionais para o exercício objectivo e responsável da sua função. Ou seja, condições de igualdade e estabilidade nas colocações, promoções e escolha das chefias, acesso e progressão numa carreira gerida por estritos critérios republicanos de mérito, na base de informações transparentes e acessíveis a todos. Tudo, enfim, o que garante o respeito pela sua condição de profissionais e magistrados e assegura aos cidadãos a imparcialidade na atribuição e abordagem dos processos a cargo do MP. Ora, em ambos os campos as condições pouco melhoraram e no plano estritamente estatutário pioraram significativamente.
Há uns meses disse a «O DIABO» que «a crise do Ministério Público é o espelho da crise da Justiça». Continua a achar o mesmo?
Objectivamente é. Pública e mediaticamente, porém, a imagem da Justiça é pior. Os jornais e os diversos estudos o dizem e alguns se têm encarregado de a espelhar assim.
É preciso uma revolução dentro do MP?
É apenas preciso o respeito pelas normas e garantias constitucionais e o respeito que em todas as circunstâncias é devido a todos os profissionais e servidores da causa pública. Só assim pode existir um empenhamento real e não apenas propagandístico na organização dos meios existentes, na gestão das expectativas possíveis e na reforma dos métodos de trabalho, que é obviamente necessárias. Em geral, vontade de trabalhar, seriedade e coragem não faltam no Ministério Público e essas são sempre as armas do êxito para qualquer mudança.
«O Ministério Público é mal amado em Portugal»
O modelo de MP que temos em Portugal está esgotado?
O modelo do Ministério Público português tem inspirado muitos modelos europeus e até o do Ministério Público do Tribunal Criminal Internacional. Em Portugal, porém, é mal amado, mas não pelas más razões. E estas também existem: são as que têm a ver com as práticas e os compromissos com um passado de autoritarismo e subserviência perante os poderes. Infelizmente, o Ministério Público é mal amado pelas boas razões, que são as que, apesar de tudo, se manifestam na conquistada independência do seu Estatuto e na genuína tenacidade e objectividade da maioria dos seus magistrados. Mas, como na sociedade actual o que conta é a imagem e esta, malgrado o esforço dos seus responsáveis, não é realmente a melhor, se calhar o modelo está, de facto, esgotado. Mas quem não quiser este modelo, em vez de tentar desvirtuá-lo na sua substância, deve assumir frontalmente essa opção e apresentar soluções alternativas claras. Nós acreditamos que o modelo tem virtualidades se for levado a sério.
Como avalia as lutas - muitas delas inglórias - do Procurador-Geral da República, nomeadamente em relação ao MP?
Sem unidade do Ministério Público nenhuma luta - como lhe chama - pode alcançar verdadeiro êxito e atingir os objectivos que se proclamam. Isso sempre foi assim no Ministério Público e hoje parece ainda mais evidente. Pela nossa parte, diga-se o que se disser, tudo temos feito e faremos para unir o Ministério Público em torno dos princípios constitucionais que o enformam e que se destinam a assegurar uma Justiça imparcial e independente para os portugueses.
Temos um Conselho de Prevenção para a Corrupção. O que espera deste órgão?
Um trabalho de análise e estudo no terreno das causas e condições institucionais, legais e materiais que podem dar origem aos fenómenos de corrupção. Uma atitude didáctica e de público alerta. Sempre entendi que a corrupção se combate essencialmente com meios preventivos. A repressão e punição, que devem ser exemplares, serão sempre, como em todos os países, casos paradigmáticos, mas singulares.
Há quem diga que este organismo está muito politizado. Isso pode prejudicar a sua actuação?
O tempo e a prática é que irão demonstraras virtualidades ou defeitos do modelo.
Fala-se muito na especialização das magistraturas em determinados tipos de crime. A corrupção, difícil de provar, é uma delas. O combate à corrupção também passa pela formação dos magistrados?
Passa essencialmente por isso, por uma formação e actualização permanente e programada dos magistrados e também dos investigadores policiais e peritos. Além disso, passa pela criação de condições organizativas estáveis no seio do Ministério Público e das equipas de investigadores que com ele colaboram. Isto, de modo a que se permita sedimentar experiências adquiridas, transmiti-las aos outros magistrados mais novos e ensaiar, em bases sólidas, novos caminhos e estratégias.
Qual tem sido o grande problema do combate à corrupção em Portugal: o poder político ou a ineficácia da Justiça?
A ineficácia da Justiça nesta área é também - se não o for no essencial - o resultado das políticas seguidas nos últimos anos. Sem enjeitar as responsabilidades da Justiça, que as há - lembremos, por exemplo, os efeitos organizativos da ideia, dominante desde há vários anos, da prevalência da investigação sobre o julgamento e as condenações - é, todavia, no plano legislativo e processual e na ostensiva limitação de meios periciais que se encontram as causas de muitos insucessos.
As magistraturas têm falado em risco de politização da Justiça perante propostas como a Lei de Política Criminal. Como avalia esta Lei?
Esta lei, mais do que condicionar a acção da Justiça, o que declaradamente também tenta, é responsável, no essencial, por uma excessiva burocratização e pela dificuldade recente de encontrar respostas tempestivas e flexíveis para os fenómenos mais actuais da criminalidade. A ela, tanto ou mais do que ao Código de Processo Penal, se deveu a impossibilidade de o Ministério Público responder com acuidade aos fenómenos deste Verão. E, no entanto, a ideia que lhe estava na génese até podia ser frutuosa.
Com este ministro e com as reformas em curso, há riscos de politização e partidarização da Justiça?
O problema não é de pessoas, é de políticas. As actuais, infelizmente, resultaram de um acordo em que intervieram muitos actores e interesses com diversas cores não só políticas, como corporativas, económicas e até societais. Os riscos de instrumentalização da Justiça existem de facto - sempre existiram - mas está ainda nas mãos dos órgãos superiores das magistraturas limitá-los ou até afastá-los definitivamente. A actuação e a doutrina desses órgãos, se corajosas, responsáveis e condicentes com os princípios constitucionais, podem evitar muitos dos buracos ou malefícios das leis. Tem sido assim em muitos países da Europa. Era bom que em Portugal os seus membros tomassem em mãos a defesa efectiva de uma Justiça eficaz, mas nem por isso menos independente.
Como avalia a reforma do Mapa Judiciário?
Trata-se de uma reforma que podia ter sido importante se tivesse sido mais bem gerida, discutida e participada. Pela nossa parte contribuímos com muitas sugestões para a melhorar. Algumas foram aceites, outras, porventura as mais interessantes para a reforma do sistema e do Ministério Público, goraram-se no final por causas a que fomos alheios. Receio, por isso, que o efeito final tenha ficado embrulhado por considerações estranhas aos seus objectivos, o que condicionará necessariamente os resultados futuros.
A ideia que temos é que esta reforma vai afastar os cidadãos da Justiça. Concorda?
Corre-se esse risco. Veremos.
«A partir de agora será bem mais difícil recuperar o que de bom o sistema tinha»
Como interpreta todos os sinais de preocupação manifestados pelo Presidente da República em relação à Justiça?
Com total concordância. Em todo o caso considero que num ou noutro caso uma intervenção mais atenta e decidida do Sr. Presidente da República poderia, porventura, ter obstado a alguns dos vícios que referi. Mas não estou obviamente por dentro das iniciativas que o Sr. Presidente tomou e posso por isso, estar a ser injusto.
Acha que deram frutos e que o Ministro da Justiça ouviu esses recados?
Nalguns casos creio, sinceramente, que sim.
Que balanço faz da actuação do Ministro da Justiça?
Dada a capacidade intelectual e cultural e a experiência política que o Dr. Alberto Costa sempre teve, as expectativas eram as maiores. Mas, infelizmente a política de um Ministro não depende apenas dele próprio. Muitas das pontes que podiam e deviam ter sido construídas, foram, à partida, sabotadas. É assim ao Governo - no seu todo - que se devem pedir contas e responsabilidades. É ao Governo no seu todo que se deve imputara visível quebra de solidariedade institucional com a Justiça e, em consequência, também, a sua grave crise de legitimidade actual.
Estamos no final de mais um ciclo político. Corremos o risco, na sua opinião, de se ter perdido mais uma oportunidade política para mudar a Justiça?
Sem dúvida. Só que a partir d agora será bem mais difícil recupera o que de bom o sistema tinha e se perdeu e infelizmente o que estava mal pouco melhorou.
O DIABO | 04.11.2008
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