Dias contados
Alberto Gonçalves
Quarta-feira, 5 de Novembro
A ELEIÇÃO DE TODOS NÓS
1 À boca das urnas, a preocupação de 60 ou 70% dos eleitores americanos era a crise económica, resultado de uma crise financeira cuja responsabilidade só uma imaginação peculiar poderá atribuir exclusivamente a George W. Bush. Apenas nove por cento confessaram afligir-se com o terrorismo, que durante dois mandatos Bush se empenhou em combater, bem ou mal. A julgar pelas prioridades correntes dos cidadãos, combateu relativamente bem. Ninguém notou o pormenor, ninguém lhe agradeceu o sossego. Visto que o sossego será temporário, ainda irão (sem trocadilhos) a tempo.
2As "presidenciais" decorreram sem problemas de maior. Mas vale sublinhar que, pelo menos em Portugal, houve quem alertasse de antemão para a possibilidade de "chapelada", como referia um blogue. Ou, como afirmava outro blogue, para um sistema eleitoral "absurdo" e com "contornos antidemocráticos". Um terceiro blogue falava na "sombra das fraudes eleitorais". Não por acaso, trata-se de blogues de dirigentes e militantes do PCP, sempre desconfiados da lisura dos homens e da eficácia da escolha popular.
3Obama obteve o maior número de votos na história das "presidenciais" americanas. O máximo anterior pertencia a George W. Bush, em 2004. Embora o facto tenha passado despercebido, Obama foi eleito por muitos dos mesmos americanos que elegeram Bush, e que por isso eram classificados de trogloditas para baixo. Agora, num processo de qualificação pessoal sem precedentes, são vistos como cidadãos esclarecidos e agentes fundamentais da "mudança".
4 Goste-se ou não de Obama, mantenho que McCain merecia ser o próximo presidente dos EUA. Não graças à campanha, que, embora revelasse aqui e ali a grandeza do homem (ver o discurso de derrota, por favor), foi maioritariamente tímida, errática e condicionada pelo "desajuste" do candidato a determinadas zonas do partido Republicano. Mas graças à sua história pessoal e ao seu carácter. Sobretudo por isso, é curiosa a leveza com que, nas televisões, na Internet e nos cafés, especialistas desvalorizam um sujeito que possui um currículo e uma grandeza superiores ao de qualquer outro líder contemporâneo. Em Portugal, então, o exercício cai no patético. Antes de menorizar McCain, os portugueses fariam bem em compará-lo, primeiro com os senhores que actualmente nos tutelam e depois, para que a comparação não fique totalmente desigual, com todos os políticos em que votaram nas três décadas e tal de democracia. Pensando bem, deixem-se estar: é demasiado deprimente.
5 Obama e McCain dividiram o voto branco. Obama concentrou na quase totalidade o voto preto, avalanche que nem a tradicional predilecção das minorias pelo partido democrático justifica. Com a eleição de Obama, insusceptível de repetição noutra democracia, o racismo dos brancos americanos tornou-se, pelo menos oficialmente, uma memória triste. O racismo dos pretos americanos é, se calhar, uma questão actual. A que não convém aludir.
6 Desde os líderes africanos, que contam com Obama para salvar o continente, até ao meu vizinho, que conta com Obama para resolver uma chatice junto da EDP, a Terra em peso espera do 44º presidente dos EUA a redenção de todos os males, numa manifestação de messianismo com que nenhum "neocon" terá sonhado. Dado que o programa eleitoral de Obama foi no mínimo vago e no máximo prosaico, é de supor que a excitação global em volta do homem se prende com a raça. Por azar, no caso a raça só exibe a superior evolução social da América face ao resto do mundo, incluindo a larga parcela do mundo que a despreza e que, por causa de Obama, festeja equivocadamente essa exacta superioridade. No mais, não me parece que a raça seja um critério de avaliação válido. Como os cidadãos subjugados aos líderes africanos que exaltam Obama poderão testemunhar, os pretos no poder não garantem uma vida melhor. Como suspira a mulher do meu vizinho, os brancos também não.
7 Um blogue subsidiário do BE (arrastão.org) celebrou o resultado das eleições com um desenho de Obama de punho erguido e enluvado, alusão aos atletas americanos que nas Olimpíadas de 1968 assinalaram, em pleno pódio, o desprezo pelo país que aceitaram representar. O "black power", como genericamente se chamou à derivação excessiva e nada Luther King dos movimentos em prol dos direitos civis, envolveu delitos comuns, violência, reivindicações de supremacia e segregação racial e ódio, imenso ódio. Não é que os moços do BE não saibam disto: acontece que isto é o que, nos momentos de excitação, os moços esperam da América de Obama, no que não diferem dos mais alucinados dentre os apoiantes americanos de McCain. Nos comícios, McCain insistiu em contrariar os alucinados dele. Só a realidade poderá contrariar os nossos. Ou, a avaliar pelo grau de alucinação, nem a realidade.
8A "vitória histórica" de Obama deveu-se ao dinheiro, à habilidade retórica, à crise financeira e à sra. Palin. Espremido o que sobra, em política interna ou externa, não sobra muito. A tábua rasa que é hoje Obama permite-lhe tornar-se um razoável presidente democrata ou um péssimo presidente democrata, amplitude não demasiado grande. Dificilmente será melhor que Clinton, dificilmente será pior que Carter. O que não será, quase de certeza, é o que a maioria dos seus devotos globais sonha que seja. O eleitorado "étnico" e religioso que, no dia 4, votou em Obama e na abolição dos casamentos "gay" na Califórnia é um mero exemplo de que a América não cabe em visões lineares. Quem gosta da América gosta dela assim, confusa e plural, e não mudará sob a "mudança" de Obama. A recíproca também é verdadeira. Apesar das transformações sociais, políticas, económicas e demográficas de sempre, no fim de contas teremos o Império de sempre, e em curtos meses, com acrobacias ideológicas pelo meio, as atitudes perante o Império voltarão à normalidade. Para alguns, aliás, nunca chegaram a sair: em comunicado, o PCP assegura que a vitória de Obama "está longe de corresponder às expectativas de uma mudança de fundo na política norte-americana". Por uma vez, o PCP tem razão. Por uma vez, felizmente.
Quinta-feira, 6 de Novembro
IMPUNIDADE PARLAMENTAR
Custa um bocadinho descer do espectáculo americano para o pequeno circo indígena, com um Governo que nacionaliza bancos a fim de imitar os países com dinheiro e um deputado do PND que passeia a bandeira nazi no parlamento madeirense. O Governo dispensa comentários. Já a subtil manifestação insular pretendeu atacar o PSD local, que eu não sabia suspeito de anti-semitismo e genocídio.
Quando muito, o PSD é culpado de tornear a Constituição, por exemplo impedindo o tal deputado, José Manuel Coelho, de assumir as suas funções (desfraldar bandeiras, etc.) depois do incidente. Revoltado, o parlamento de cá defendeu o direito do sr. Coelho à imunidade e à suástica. Os partidos nacionais requisitaram intervenção presidencial. O presidente incomodou-se. Eu também me incomodei, sobretudo pelo facto de, por instantes, ter acreditado que o gesto do sr. Coelho acabara com um dos últimos tabus da política portuguesa: o de que só a extrema-esquerda tem direito a apelidar os adversários de "nazis" e "fascistas". Desgraçadamente, li em seguida que, afinal, o sr. Coelho é simpatizante do PCP.
Temos, em suma, um representante do PND que chama nazi aos outros e comunista a ele próprio, os amigos do dr. Jardim escandalizados com ofensas e uma assembleia regional que bloqueia a entrada de um deputado quando, em S. Bento, onde quatro quintos dos deputados faltaram ao debate sobre o Estatuto dos Açores, complicado é evitar que eles saiam. A propósito de saídas, apetecia-me regressar aos EUA e voltar já. Ou nunca.
Sexta-feira, 7 de Novembro
UM DEBATE OU DOIS
A decisão do tribunal de Felgueiras a propósito dos pecadilhos da autarca homónima provou, se preciso fosse, que os julgamentos das nossas "figuras públicas" são como a pior ficção televisiva, que deixa o povo ansioso durante meses em redor de um desfecho totalmente previsível: absolvição ou pena suspensa. Embora, dada a quantidade de processos do género, a monotonia das sentenças desafie a lei das probabilidades, não é impossível que os arguidos sejam de facto sempre inocentes ou quase. A questão passa pela inutilidade da coisa.
Valerá a pena consumir recursos numa trapalhada lenta, cara e que nunca termina na cadeia? Ainda que entre o início e o fim de cada processo se renove a ilusão de que a Justiça não dorme, a resposta é não. Em Portugal, mais valia que a Justiça dormisse. Acordada, funciona de tal forma que a dra. Felgueiras saiu triunfante, inocente e imaculada do tribunal que minutos antes a condenara a três anos por crimes diversos. Não admira. Enviada em liberdade e com uma perda de mandato revogável, a senhora não tem nada de que se arrepender, nem sequer do exílio brasileiro, que a expôs ao sol de Ipanema mas não a consequências penais. Com jeitinho, o único contributo do episódio felgueirense será para um vasto debate sobre a ilegitimidade da prisão preventiva. E outro sobre a legitimidade das fugas. |
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