Tuesday, January 15, 2008

A JUSTIÇA DAS NOVAS OPORTUNIDADES

Destruição do caso julgado
"Não pode ser tudo a favor do condenado e do criminoso e nada a favor da necessidade social de segurança. Como sabemos, os recursos processuais são o meio legal posto à disposição das pessoas em litígio para corrigirem os vícios ou erros cometidos na decisão, portanto o instrumento, o remédio, que permite reapreciar o mérito da decisão judicial. Os recursos ordinários (já não os extraordinários) interpõem-se de decisões não transitadas em julgado. Quando transitada em julgado, a decisão sobre a relação material em discussão no processo ganha força obrigatória.

Agora, no novo Código de Processo Penal (CPP), o legislador, tocado por mais uma originalidade, veio destruir o valor da imutabilidade relativa do caso julgado. Diz, de forma espantosa, o nosso não menos espantoso legislador, que, se após o trânsito em julgado da condenação, mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime – Artigo 371-A do CPP. Ficamos a saber que a partir de agora é permitido ao condenado, com condenação transitada em julgado, pedir a reabertura da audiência com vista à aplicação de um novo regime penal que, em concreto, lhe seja mais favorável, o que impõe a realização de um novo julgamento, mesmo que parcial. Não tendo o caso julgado qualquer protecção, esse novo julgamento parece obrigar a um repetido juízo sobre a tipicidade dos factos, grau de culpa, fins de prevenção, espécie e medida da pena. A ser assim, ocorrem várias perguntas: qual o tribunal competente para realizar tal tarefa, o da condenação ou o que for apanhado no momento? Que limites são impostos à convicção deste julgador, designadamente estará impedido de alterar os factos provados? Ao aplicar o novo regime serve-se, apenas, dos elementos de prova que estão no processo ou não?

O não respeito pela decisão transitada em julgado cria uma enorme perturbação na ordem das decisões judiciais. A certeza, a paz judicial, a segurança jurídicas, que são apanágio de um Estado Constitucional de Direito, recomendam vivamente que esta norma seja alterada, uma vez que o seus efeitos serão devastadores para a imagem e credibilidade da Justiça, podendo, ela mesmo, ser um fonte inspiradora de desigualdades, face às variadas interpretações que gera. Não pode ser tudo a favor do condenado e do criminoso, permitindo constantemente uma reapreciação de uma condenação, e nada a favor da necessidade social de segurança e certeza do Direito e da Justiça.

Temos, para nós, que os tribunais podem recusar a aplicação desta norma por ser inconstitucional, na medida em que o alcance do Artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, quando manda aplicar retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, não possui, como já disse o Tribunal Constitucional, alcance ilimitado, uma vez que a protecção constitucional do caso julgado justifica a limitação da garantia estabelecida naquele preceito legal. O julgador não é obrigado a aplicar uma lei inconstitucional. É pena que os seus mentores não tenham pensado nas consequências dos seus actos e não tenham percebido que a matriz de qualquer reforma penal assenta nos valores supra e infraconstitucionais. A protecção e o respeito do caso julgado têm consagração na Constituição, conforme os artigos 2.º; 111.º, n.º 1; 205.º, n.º 2; e 282.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Aqui fica o alerta para que o cidadão tome consciência desta nódoa que mancha a segurança da Justiça, que, parafraseando o nosso Eça, nem com benzina sai, a não ser com algo que corte a raiz a este pensamento."

Rui Rangel

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