Sunday, May 6, 2007

PSEUDO LIBERAIS

As religiões laicas
Se retirarmos o problema de Deus, o modelo religioso é frequentemente encontrado na política e em muitos outros campos.

Vítor Bento

Já aqui citei a frase de Alfred Marshall, destacado economista do final do século XIX, segundo a qual “… as duas grandes acções formadoras da história mundial têm sido a religiosa e a económica”. Procurei então contrariar o infundado desprezo que os “intelectuais” geralmente votam à Economia. Volto hoje à mesma frase para recordar que a Religião tem, na vida social, uma importância muito superior à que geralmente lhe é reconhecida, mormente para aqueles que a invectivam.

Uma religião compreende uma “cosmovisão”, escorada num conjunto de verdades aceites pela fé e dogmatizadas por uma teologia doutrinária desenvolvida a partir de um texto sagrado (que pode ser um complexo de livros vários), a que se associa um conjunto de símbolos e rituais. Essa “cosmovisão” religiosa assenta, normalmente, na promessa de um paraíso para além desta vida, a que se contrapõe o mundo onde vivemos, manchado pela imperfeição dos homens, que deve ser combatida.

Com a fé a preceder a razão e distinguindo fiéis e infiéis, como os que estão dentro ou fora da verdade doutrinariamente estabelecida, a organização religiosa preocupa-se sobretudo em preservar a ortodoxia doutrinária, usando a autoridade ao seu alcance para reprimir heresias que procurem explorar as margens da verdade ortodoxa.

Se retirarmos o problema de Deus, o modelo religioso é frequentemente encontrado na política e em muitos outros campos, nomeadamente em quadrantes ostensivamente adversos às ideias religiosas. No campo da política há vários exemplos, com maior ou menor identificação de ingredientes do modelo.

O exemplo mais fácil de identificar é o do marxismo-leninismo, onde se encontram todos os ingredientes: os textos sagrados (a começar por “Das Kapital”), os profetas (Marx, Engels e Lenine, entre outros), a escatologia (com a promessa de uma sociedade perfeita, a comunista, que ninguém viu em vida, e a que se contrapõe o imperfeito mundo onde vivemos, incluindo as experiências do chamado “socialismo real”), os rituais (comícios e manifestações), a ortodoxia (partidos comunistas ‘mainstream’), as heresias (grupos da extrema-esquerda que se reclamam da pureza da matriz) e a enorme fé (apelidada de esperança) que liga tudo isto. E a que não escapa sequer o culto dos santos, como testemunham ainda hoje as permanentes romarias aos túmulos Lenine e Mao.

Mas com “cosmovisões” mais restritas e mais terrenas, o modelo religioso – com fiéis e infiéis, com cerrada ortodoxia contra as heresias, tudo envolvido numa grande fé (que os fiéis tomam por razão que os outros não entendem e esgrimida em indiscutíveis argumentos de autoridade) – está presente em quase tudo à nossa volta.

Dois exemplos recentes. Segundo relata a imprensa, um conflito opõe a Ordem dos Advogados a uma advogada que pretende abrir escritórios nos centros comerciais. A Ordem sustenta a sua oposição no argumento de não querer “mercantilizar” a profissão. Não adianta recorrer à Razão para explicar que o que a profissão faz, trocando serviços por dinheiro, sempre foi “mercantilizado”, porque a Fé do convento leva a acreditar que não, que se trata apenas de uma espécie de “sacerdócio remunerado”. A advogada surge, pois, como herética que desafia a ortodoxia estabelecida e esta reage como todas as ortodoxias: com a autoridade ao seu alcance.

Outro exemplo é retirado de um blog auto-qualificado de liberal, situado no quadrante político convencionalmente de direita e com uma designação inspirada no léxico religioso, mas sugestiva de oposição à ideia religiosa. Há meia dúzia de meses foi ali convidado a escrever aquele que há década e meia era considerado o “primaz” libertário. Escolhendo, provocadoramente, abordar temas fracturantes para a ortodoxia do politicamente correcto, rapidamente assustou os guardiões do templo, acabando “excomungado”. Raramente as suas ideias foram racionalmente confrontadas, mas foram frequentemente invectivadas como heréticas. Como curiosidade, de entre os guardiões do templo, o mais assanhado “argumentador religioso” contra o herege foi o que mais militantemente se assume como anti-religioso e anti-clerical.

Este exemplo não teria relevância de maior e não passaria de mera trivialidade se não servisse para mostrar que a principal religião laica da actualidade, com devastadores efeitos na liberdade de pensamento e de expressão, é precisamente a do politicamente correcto.
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