Segunda-feira, Novembro 05, 2012
A Possessão dos Aflitos
Começo por uma ilustração introdutória.
Na Câmara Municipal X existe um fornecedor de serviços Y (empreiteiro, serralheiro, marceneiro, etc) que tem um contrato de exclusividade com o município. Significa que é ele que faz todos os serviços necessários naquela área. Em contrapartida, inflacciona os orçamentos, de modo a incluírem o custo real, mais, pelo menos, comissão para o vereador da área e comissão para o presidente da autarquia. O resultado é que o custo da obra municipal fica, religiosamente, entre trinta e cinquenta por cento mais cara (e estou a ser benévolo). Mais cara a quem? Exacto: ao Orçamento, ao contribuinte, ou aos fundos de coesão (que foram a mais recente versão do "ouro do brasil"). Pois bem, este cenário não é restrito à Câmara X. Pelo contrário é endémico e infestante em toda a rede autárquica, do Minho ao Algarve, do Continente às ilhas. Agora multipliquem isto, no mínimo, por trinta anos. Acrescentem-lhe ministérios, direcções-gerais e máquinas partidárias; seitas de advogados e sociedades secretas mas não muito; empresas públicas e oligopolvos; famílias cristalizadas e enquitadas aos úberes do erário em fogoso e hereditário regime de endogamia; e tereis o princípio do panorama devorista que nos desgoverna há décadas. Estado de Direito, estado social, democracia representativa, liberdade de expressão, não passam de balelas para entreter e aturdir papalvos. Na realidade, não passam de pretextos- para o devorismo instalado. E comilão. Claro, nisto, como em tudo na vida, há os que comem pela medida grande, os que comem pela medida pequena e os que andam lá pelo meio a ver se abocanham naco oportuno.
Entretanto, com a fatalidade cíclica que já a Bíblia anuncia, chegou a crise. E a receita, nesta emergência, é proverbial: os que comeram antes (no orçamento) pela medida grande comem agora (na austeridade) pela medida pequena; e os que comeram antes pela medida pequena, comem agora pela medida grande. É uma questão de semântica: a diferença entre comer à mesa e comer no pelo.
Porém, tudo isto que acabo de escrever, esqueçam. Sabeis bem que não tem pingo de realidade. Não passa de alucinação minha. Delírio fuirioso. A verdade só recentemente foi descopberta e está, agora, em processo de acelerada revelação pública, a cargo de nuvens de papagaios ev-angélicos, em débito (e a crédito) do espírito santo. Todos aqueles senhores da qualidade dos Dias Loureiros, Sócrates, Pina Mouras, Duartes Limas, enfim, todas essas fortunas efervescentes que borbulharam do dia prá noite, ou melhor, da noite da treva fascista para a manhã radiosa da santa democracia, pois, toda essa gente abnegada sempre laborou com probidade, zelo e desinteresse pelo bem comum, pela saúde do estado, pela glória da nacinha; e são, hoje, apenas vítimas infelizes da ingratidão e, sobretudo, da inveja (meu Deus, a inveja, esse alibi-rápido dos medíocres e microtalentos!) da gandulagens ignaras e parvajolas deste país. Como eu, por exemplo. Pois, estes beneméritos, estes filantropos descomedidos (e toda aquela imensa rede orquestrada do devorismo cristalisado, a que eu, tão ignobil quão injustamente os associei, na presidência), nada delapidaram, perverteram ou sequer arrecadaram. Nada! Nem um tostão! nem um cêntimo! Não foram eles. Sabemo-lo agora, anuncia-nos, em coro celestial, a passarada mensageira : foi a Constituição. Suspeitava-se da bicha, da ténia descomunal que rilhava as entranhas deste desgraçado país. Alegremo-nos: Portugal não sofre da Bicha, sofre da Constituição!
Como dizia aquela senhora Cândida, não há corrupção em Portugal. Nunca houve. Nem corrupção, nem, muito menos, corruptos. Nunca! Estamos vacinados; se é que não somos mesmo geneticamente imunes. O que há é a Constituição. Foi ela que roubou, fundiu, refundiu, esbanjou, traficou, vendeu, traíu, malbaratou, malgastou, devorou e esgalamiu. Foi ela! Foi ela que os obrigou! Socialista? Qual quê!, monárquica absolutista!
Isto das revelacinhas é como os segredos de fátima: vem às fatias. A seguir vão revelar-nos que não é, na verdade, a constituição da república: é o fantasma de D.Miguel. Que voltou para se vingar. Para assombrar e acagaçar o constitucionalismo, para entortar e atrair diarreias legais ao Estado de Direito, vómitos esverdeados no Estado Social e fazer andar à roda a cabeça ausente da menina Democracia. É Ele! O Indesejado... ultrapassou D.Sebastião, pela direita, e veio tomar desforço. Até os monárquicos light se assustam e persignam. É ele, é ele! É ele que nos sabota e tresvaria os gestores, os doutores, os políticos! É Ele que lhes desarranja a moral e extrai a coluna! É ele, o mostrengo tirano, o espírito imundo! O país não precisa da Troika: precisa é dum exorcista! Ou então dum caçador de vampiros, caso seja o outro que se levantou lá da sepultura em Santa Comba!...
O Papa que venha. De urgência! Que nos acuda! O caso não é para menos. Que venha Sua Santidade em pessoa para nos exorcizar a Constituição, seja quem for que lá se tenha calafetado. De repente, a metafísica - qual quê, a metafísica não chega, a superstição inteira!, a necromancia toda! - renasce para resgate do materialismo, dialéctico e pialéctico: será o próprio Belzebu?
Até já o actual governo sofre e padece. Enganou-se nas contas? Enganou-se nos cálculos? Enganou-se no plano, na receita, no país? Meteu as patas de trás pelas patas da frente e as ferraduras pelo tapa-orelhas? Não, não foi ele: foi ela, maléfica, imunda, a Constituição! Sempre ela! Ubícua e omnívora, despótica e plutofágica! Devoradora de toda a nossa riqueza, de toda a nossa energia, de toda a nossa esperança! Esterilizadora de todo o nosso futuro!
E o estúpido do embaixador de Israel não vê. Sempre tão geniais na ficção e tão bacocos na realidade, estes judeus farfantes. Entretido com putatitvas nódoas passadas na nossa feíssima bandeira, nem repara na mancha medonha e presente que alastra, escorre e abomina por toda a nossa Constituição... Socialista? Pior: Nacional-Socialista. É o terceiro segredo desta lástima: Adolfo Hitler em possessão.
Publicada por dragão
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