Retornados
Uma nova palavra entrou no vocabulário corrente do Português. É uma derivada de «retorno».
O retorno é antigo. Havia os que retornavam da Índia com sacos de especiarias e pardaus, recebidos como heróis. Havia o retorno espectral dos perdidos nas batalhas, que vinham surpreender a bela Infanta. E todos tinham uma aura, mesmo os «brasileiros» broncos, mas que faziam solares e melhoravam terras. O retornado era um bem-vindo.
Mas agora acontece que o retornado é um náufrago. Não traz milhões e ninguém o espera. E, mais do que isso, é uma população inteira, fugida de um império que se afunda.
Por isso sobre o retornado recai agora uma maldição. Diz-se e escreve-se que eles eram «esploradores», «ávidos de lucros», «criminosos de delito comum», «culpados de si mesmos». Transforma-se o retornado numa raça impura e maléfica, objecto de um ódio racial.
Esses que apontam os crimes dos «retornados» - que fizeram eles durante vidas inteiras senão aproveitarem-se dos ditos «crimes»? Como foi possível a vida parasitária da maior parte da população portuguesa durante séculos senão às custas do preto, accionado pelo colonizador? Donde vinha o café e o açucar que se consomem ainda hoje abundantemente nas pastelarias de Lisboa? Donde vinha o algodão barato que permitia a tantos operários e patrões sustentarem-se de fabriquetas primitivas? Donde vinham as toneladas de ouro que faziam do escudo uma moda forte, permitindo, com uma indústria rudimentar, sustentar legiões de funcionários improdutivos?
Todos somos responsáveis pela política de Portugal em África, prosseguindo com tenacidade desde os fins da monarquia, objectivo prioritário da Primeira República, a que se dedicavam homens como Mariano de Carvalho, Brito Camacho e Norton de Matos.
Os retornados não são mais que o boomerang do império que todos nós fomos. O retorno que nos atinge em cheio é a arma que o nosso braço lançou. Os retornados, com que o país foi solidário enquanto foram prósperos, são uma acusação viva lançada à cara da nação inteira.
Uma dupla acusação. Em primeiro lugar, porque Portugal inteiro se identificou com os colonos a que chama agora criminosos. Em segundo lugar, porque o fenómeno dos retornados é o resultado de uma política de descolonização cuja torpe inércia é tão profunda quanto o arranque das descobertas foi deslumbrante. A página da descolonização não foi menos sangrenta que a da expansão; só que foi um pântano podre enquanto a outra foi fogo que alumiou a terra.
O ódio racial aos retornados a pretexto dos seus «crimes» é apenas uma maneira de a nação portuguesa querer ilibar-se dos crimes por que toda ela é solidariamente responsável. É um caso típico de bode expiatório. E lança uma viva luz sobre o mecanismo do racismo.
Trata-se de discriminar uma parte da nação lançando sobre ela o odioso dos males colectivos. O «retornado» é o cristão-novo dos nossos dias. Serve para o resto do povo imacular a sua consciência; convencer-se que nada tem que ver com os malefícios e os abusos da colonização. Serve também para desviar as atenções dos erros cometidos em nome da nação: se eles retornaram é porque são intrinsecamente «maus» e não porque a descolonização foi um fracasso vergonhoso. E servirá anda para desculpar outras inépcias que vão cometer-se.
O racismo nasce fundamentalmente dessa necessidade de «limpeza» de uma dada comunidade. Nós, Portugueses, ficamos puros, porque as culpas foram desse punhado de «criminosos». E se tiveram de retornar, a culpa não é dos responsáveis dessa sangrenta e lamacenta descolonização: não, a culpa é dos «retornados», «culpados de si mesmos», como já foi escrito.
E a isto acrescem interesses mais baixos. Há desemprego no País - neste país de boa gente que tem as mãos limpas. Pois excluam-se do emprego esses «criminosos de delito comum» - e ficarão mais empregos disponíveis para os «verdadeiros» portugueses.
«Retornados» - fenómeno novo da nossa história recente, sintoma terrível de uma doença psíquica nacional. Tirando o caso dos cristãos-novos, fomos até hoje um povo pobre, descuidado, inconsciente talvez, parasita, mas sem maldade profunda.
Fizemos alegremente a colonização com a crueldade de uma criança, mas sem a sábia tortura organzada por outras nações. Recebemos em cheio a onda da descolonização, que não soubemos prever nem organizar. Ainda não entrevemos sequer a transformação profunda que isso vai introduzir com a lentidão de um corrosivo na nossa consciência nacional. Quem sabe, o primeiro sintoma grave é esta culpabilização de uma fracção da população que não soubemos proteger como era nossa obrigação. Os «retornados» chegam no momento em que precisamos de uma desculpa para o maior fracasso da nossa história e de um objecto para cevar a nossa frustação irremediável.
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Fonte: António José Saraiva, in Revista “Critério”, nº 1, Novembro de 1975.
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