Os emigrantes e a chapelada*
Publicado por helenafmatos em 25 Setembro, 2008
Os emigrantes têm sido o constante embaraço das elites em Portugal. Qualquer falante do português sabe que expressões como “música de emigrante”, “casa de emigrante” ou “estilo de emigrante” estão longe de ser positivas em Portugal. Isto é válido claro se estivermos a falar dos emigrantes portugueses. Vimos quilómetros de filmes com os dramas da emigração italiana, gastámos quilos de lenços de papel a limpar as lágrimas com as atribuladas viagens dos esfomeados irlandeses em busca duma terra menos madrasta mas no que respeita aos emigrantes portugueses a primeira vez que os vimos fora do neo-realismo das reportagens e do paternalismo folclórico dos programas ditos sobre emigrantes foi no filme “Aquele Querido Mês de Agosto” (a ver antes que seja tarde). Até agora o máximo que a pátria lhes concede sem torcer muito o nariz são as celebrações oficiais da diáspora – designação que os torna mediática e culturalmente aceitáveis. Nos restantes dias espera-se que lá fora não dêem nas vistas e cá dentro não nos causem embaraços.
É verdade que durante décadas a pátria lhes agradeceu as divisas mas também é verdade que se ria quando ouvia as canções “pirosas” em que eles davam conta das saudades dum país que não só não lhes dera nada como ainda menos lhes perdoava o andarem sempre ao contrário da História anunciada: quando a I República, o Estado Novo e a Revolução clamavam futuros radiosos, eles, indiferentes a tais desígnios, embarcavam clandestinos e passavam a fronteira a salto. E não se julgue que, uma vez lá fora, adquiriam maior perspicácia política: em França, no Maio de 1968, os emigrantes portugueses não só não viram libertação alguma como em vez de darem o braço a Conh-Bendit meteram apavorados as mulheres e os filhos nos comboios com destino a Santa Apolónia. Quarenta anos depois, na Venezuela, continuam politicamente ignorantes pois não percebem que os raptos e assassínios de que são vítimas não são propriamente crimes mas sim um exotismo, próprio dum país que compra computadores exóticos e que é chefiado por um presidente também ele exótico, como bem explicou o ministro português dos Negócios Estrangeiros. Não admira que com esta obstinação em andar sempre contra aquilo que constitui o “deve ser” instituído na pátria, os emigrantes tenham sido sempre vistos como umas criaturas meio boçais a quem a falta de cultura tornava vítimas da ganância de ganhar mais, sendo que quem assim os retratava esquecia que eles aqui não ganhavam nada. Em Setembro de 1974, houve até um secretário de estado da Emigração que os quis libertar das garras do capitalismo e consciencializar, implementando um programa para o seu retorno a Portugal. Como é óbvio os emigrantes não se quiseram consciencializar e continuaram a fundar associações de transmontanos na Suíça, designação que em si mesma comporta uma espécie de contradição insanável entre os termos mas que revela uma extraordinária sabedoria de vida.
Mas eis que, em 2008, o governo de José Sócrates resolve intervir neste calcanhar de Aquiles nacional e particular calcanhar do PS, pois não só este partido experimenta frequentes dificuldades em captar o voto dos emigrantes como sobretudo nem sempre anda nas melhores companhias nos círculos da emigração. (Veja-se o caso do Brasil onde investigações à corrupção dos casinos clandestinos levaram a figuras como Licínio Soares Bastos que, segundo a imprensa, é um dos principais financiadores do PS naquele país). Para mudar a lei, o PS recupera a figura do emigrante reaccionário e atrasado e não hesita em ir buscar ao armário da agitprop o fantasma da chapelada. O voto dos emigrantes é susceptível de ser objecto de ‘chapeladas’ – explicou Vasco Franco. Nem sei como o PS demorou três décadas a descobrir isso pois só por ‘chapelada’ se pode explicar que os emigrantes ao longo de todos estes anos não tenham votado esmagadoramente no PS e dado votos ao PCP, que apoia o PS nesta tentativa de tornar impraticável o voto dos emigrantes. Afinal, merecerão votar umas criaturas que há mais de um século se recusam a fazer de figurantes nos grandes discursos dos grandes dirigentes da pátria e acreditaram simplesmente que podiam, lá longe, mudar a sua vida? E que, como se tal não fosse pouco, ainda teimam voltar, a cada Verão, a esse país que só existe na memória deles para passar aquele querido mês de Agosto, pelo qual dizem as canções que só eles ouvem levam o ano inteiro a sonhar…
*PÚBLICO 22 de Setembro