A saúde mental dos portugueses
Gabriel Mithá Ribeiro
31/5/2018, 0:12
Se hoje já é problemático, como sobreviverão os profissionais de lares de idosos, utentes, quando as atuais gerações ainda mais mimadas, impulsivas, viciadas ou preguiçosas chegarem ao outono da vida?
A saúde mental dos portugueses, de José Miguel Caldas de Almeida, é um dos ensaios recentes publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O facto de o livro não parecer suscitar maior interesse é sintomático de um espaço público que possui uma forte componente de pântano que afunda, imobiliza, apodrece muita da matéria-prima intelectual de qualidade.
Não há mistério. A espuma dos dias da política e do futebol monopoliza a opinião pública e os seus protagonistas comportam-se como crianças mimadas que se tomam como centros do universo. É muito difícil corrigir esse bloqueio ao civismo sem que os agentes em causa, em particular a classe política (figuras tutelares do Estado, governantes, deputados e demais agentes partidários), tomem a iniciativa de libertar muitíssimo mais o espaço público deles mesmos. O que está em causa não se resume a mudar de canal. Tem a ver com a modelação da vida social a partir das instituições tutelares.
Há mais de dois mil anos, os gregos ensinaram que o valor cívico da governação da polis (a política) deve ser gerado pela ágora, o espaço de discussão pública de todos com todos orientado pela filosofia, história, ciência, reflexão crítica, isto é, a sua ideia de cidadania não foi fundada nem alimentada pela discussão e disputa do poder pelo poder, antes do conhecimento pelo conhecimento. É por isso que se tomavam como civilizados. O poder pelo poder era coisa de bárbaros.
Hoje tornámo-nos democraticamente bárbaros. O nosso espaço público submeteu-se ao totalitarismo do campo político. Este sobrepõe-se sem meias-tintas aos campos intelectual, científico, cultural, cívico, civilizacional, ou seja, mais do que inspirados pelos gregos renovámos o guião das milenares tradições tribais bárbaras, uma vez que quem controla o poder tutelar do estado tem o direito de silenciar a autonomia da sociedade. Se na democracia ateniense uma multidão de escravos sustentava a elite de cidadãos, nas democracias contemporâneas o sentido da vida coletiva sobrevive escravizado pelas agendas partidárias.
A consequência está no exemplo do livro de José Miguel Caldas de Almeida que correrá o risco de não sair da penumbra. Se o título promete analisar A saúde mental dos portugueses, o conteúdo faz o inverso ao elucidar o leitor sobre a sua doença mental. É aterrador tomar consciência que, em contexto europeu, a população portuguesa situa-se no topo da prevalência de perturbações mentais com valores acima de 20%, cifra apenas equiparável à da Irlanda do Norte. Motivo para tocar a rebate os sinos de alarme caso a nossa cidadania fosse equiparável à dos atenienses de há muitos séculos.
O autor orienta o seu discurso num sentido clínico-individual, mas sem deixar de insistir na relevância do contexto social para a promoção do bem-estar mental dos indivíduos, isto é, para a saliência de «(…) sentimentos de satisfação com a vida, emoções positivas, ausência de emoções negativas, sensação de realização pessoal e de produtividade, bem como sentimentos de vitalidade e energia, ligados ao bem-estar físico» (p.27). Tendo em conta que a contextualização macro do bem-estar social não é desenvolvida no livro (cf. pp.63-64) e que o autor coloca o enfoque na necessidade de melhoria das políticas públicas de saúde mental, sigo uma linha argumentativa complementar.
Dificilmente deixará de ser problemática uma sociedade onde se entra em salas de aula, autocarros, cafés, restaurantes ou noutros espaços institucionais ou de sociabilidade sem que, por norma, se encontrem ambientes tranquilos propícios a alguma introspeção, a conversas e leituras tranquilas, ao prazer do pensamento, ao respeito pelas regras de convívio. Ora por causa do abuso da palavra (estádios de futebol, telemóvel na rua e salas de aula funcionam como vasos comunicantes), ora por causa do som de televisões ou da música em cafés e restaurantes, ora por causa de automóveis-discoteca que perturbam quem mora em ruas movimentadas, ora por outras razões – a tortura do ruído invadiu-nos sem freio num país que «(…) apresenta valores francamente baixos nas dimensões de felicidade e calma/paz»(p.62).
Noutra perspetiva, em certas zonas habitacionais caminhadas reparadoras podem revelar-se desconfortáveis por termos de cuidar onde colocar os pés por causa de dejetos caninos; desviar o olhar da selvajaria grafiti ou de edifícios mal conservados ou degradados; evitar praças com automóveis coloridos por descargas intestinais de pombos. Entre outras incivilidades.
O bem-estar físico e mental de uma população dependerá tanto da correção dos atropelos exemplificados, quanto da minimização da poluição gerada pelo tráfego urbano. Desinvestir culturalmente e de forma tão radical na civilidade e boa educação, como as nossas sociedades têm feito, é muito provável que tenha deixado campo aberto a doenças mentais que podem assumir dimensões incomportáveis. Comprovado é que desistimos de uma ideia de civilização enquanto valor e projeto social e cívico partilhado por todos, bem como esvaziámos o lugar do sublime na vida quotidiana.
Considerando que o livro destaca o descontrolo de impulsos, os abusos de álcool e de outras substâncias como tendo especial incidência no universo masculino, infiro que combatemos o «Sebastião como tudo sem colher (…) e depois dá pancada na mulher»não necessariamente em busca de virtudes cívicas, antes para abrir a porta a novos vícios. A invasão do espaço cívico pelo campo político é sintoma disso mesmo.
É doloroso cruzarmo-nos com ex-colegas professoras que, em poucos anos, passam a assemelhar-se a farrapos humanos corroídos pela depressão. Refere o autor que se trata da doença mental com maiores custos anuais, que mais faz perder anos de vida e que atinge com especial incidência as mulheres.
Portanto, a ‘porrada’ na mulher parece ter-se limitado a mudar de local e forma. Sendo as salas de aula espaços de modelação de atitudes e comportamentos que todos frequentam e sabendo da dimensão nunca antes atingida pela indisciplina e violência escolares, jamais ganhámos vergonha de agendas partidárias e mediáticas para o ensino que conquistam votos omitindo os ambientes bárbaros de salas de aula.
Se hoje já é problemático, como sobreviverão os profissionais de lares de idosos, além dos utentes, quando as atuais gerações ainda mais mimadas, impulsivas, viciadas ou preguiçosas chegarem ao outono da vida? Não creio que tenha existido uma geração de adultos tão irresponsável a semear em consciência bombas-relógio.
José Miguel Caldas de Almeida organiza as perturbações mentais em comuns, as que se manifestam com relativa frequência na população em geral (por exemplo, perturbações de ansiedade, de humor e afetivas, de controlo de impulsos e de uso de álcool e outras substâncias), e graves, as mais raras (por exemplo, ideias delirantes, alucinações, afastamento da realidade, ausência de consciência patológica).
Além do que referi, chamo a atenção para a relação com a ideia de autoridade transformada numa patologia especialmente corrosiva das instituições, das famílias ao estado. No caso dos portugueses, a fonte é óbvia. Chama-se Salazar. Anda próxima da irracionalidade a forma como se (des)trata o tempo histórico do ditador. Fazendo coro com outros países ocidentais por pretextos diversos, impôs-se uma pulsão mórbida de bater a-torto-e-a-direito no defunto Salazar que reduziu a missão das fundamentais ciências sociais e humanas a indústrias produtoras do desvio funcional depressivo da memória coletiva.
Considerando que as identidades coletivas são fundadas e vivem dependentes do sentido que atribuem ao seu passado, com o detalhe da portuguesa ser das mais ancestrais, o que chega das universidades como matéria-prima ao senso comum resume-se a crimes, abusos, coisas más praticadas pelos antepassados ao longo de muitos séculos e como se nada mais tivesse acontecido. O alimento da identidade coletiva passou a esgotar-se na escravatura,‘colonialismo’, inquisição, racismo, fascismo, capitalismo, imperialismo, trabalho forçado, exploração, guerras, massacres. Não importa se essas ‘verdades’histórico-identitárias sejam sustentadas em anacronismos grosseiros, em seletividades de feira, em deturpações esquizofrénicas. O que conta é torturar mentalmente o sujeito coletivo. Não há dignidade que resista a tamanha fúria inquisitorial.
Uma doença mental coletiva com dimensão significativa reflete ainda patologias do conhecimento. Fazendo publicidade em causa própria, o Novo Manual de Investigação (2018) procura contribuir para que se ultrapasse o mal-estar no conhecimento, o que implica reinventar o seu lugar no espaço público. Por via da renovação dos pressupostos da investigação sobre as sociedades e os seus fenómenos, as gerações que estão a chegar às universidades podem e devem preparar-se para colocarem à prova, sem hesitações, conhecimentos e figuras tutelares que aí encontram.
Será bem mais provável que ocorra uma renovação civilizacional e social progressiva, sustentável, pacífica se as universidades ousarem o nobre exemplo de se colocarem em causa a si mesmas, de colocarem em causa os conhecimentos que elas mesmas têm produzido e que não impediram que se desembocasse na situação aterradora retratada no livro de José Miguel Caldas de Almeida, A saúde mental dos portugueses (2018, Fundação Francisco Manuel dos Santos).
E QUALQUER DIA ANDA A COMER DEMOCRACIA INTERNACIONALISTA...