A “exuberância e a rapidez” da subida recente das taxas de juro da dívida portuguesa, nos mercados internacionais, “surpreendeu” o IGCP, a entidade que gere o endividamento público português. Em entrevista ao Observador, no dia em que as taxas a 10 anos superaram a fasquia de 1%, a presidente Cristina Casalinho reconhece que os custos mais elevados vão refletir-se no financiamento do Estado português – desde já, no leilão de Obrigações do Tesouro que está previsto para a próxima quarta-feira.
A presidente da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), que confirma estar de saída da instituição que liderou nos últimos 10 anos, defende que “as taxas de juro negativas ou muito baixas que temos vivido nos últimos anos não são taxas que sejam sustentáveis” e é preciso preparar uma subida que é natural mas que os bancos centrais terão de garantir que não acontece de forma demasiado brusca.
A poucas semanas do fim do programa de compras de dívida por parte do BCE, ao abrigo do programa pandémico que foi lançado, Cristina Casalinho admite que é algo que “assusta um bocadinho, pela dimensão” da intervenção que houve até agora e que, em certa medida, vai deixar de existir. É um “grande fator de incerteza” a forma como os mercados vão reagir a isso, nos próximos meses, reconhece a responsável.
As taxas de juro a 10 anos no mercado secundário superaram hoje a marca de 1%. No final do ano passado estavam abaixo de 0,2%. O IGCP tinha indicado que era expectável uma subida dos custos em 2022 mas antecipava que chegássemos a esta marca de 1% tão rapidamente, logo neste início de fevereiro?
Não, realmente… Nós, no IGCP, antecipávamos a inversão do ciclo de descida das taxas de juro este ano mas a exuberância e a rapidez da subida surpreendeu-nos. Mas não podemos pensar que isto está desligado do que está a acontecer com a inflação. De alguma forma, a surpresa com a velocidade a que as taxas de juro subiram é justificada pelo facto de a inflação também ter aumentado de forma muito significativa. E se há alguns meses havia a expectativa de que este aumento pudesse resultar de fatores predominantemente temporários, transitórios, neste momento há alguns receios de que haja algum caráter de maior permanência – ou, pelo menos, de que essa transitoriedade seja mais prolongada do que aquilo que se esperava.
Foi isso que foi reconhecido pelo BCE na semana passada, na sua leitura?
Na semana passada, a presidente do BCE sinalizou que, de facto, há hoje uma preocupação acrescida com a subida de preços e mesmo outros membros do Conselho do BCE têm vindo a indicar que – quer pela melhoria da atividade económica quer pela elevação dos preços – justifica-se que haja uma alteração mais acelerada do pendor da política monetária. Será o BCE a seguir as pisadas do que já foi feito por outras autoridades monetárias, quer a Reserva Federal [dos EUA] quer o Banco de Inglaterra, que também na semana passada subiu a taxa de juro, havendo mesmo alguns membros do comité monetário a defender que a subida devia ser até mais rápida. E quanto à Reserva Federal, há expectativa de que possa haver até sete subidas de taxas de juro este ano e admite-se que, em vez de as taxas serem subidas em 25 pontos-base em cada degrau, haver subidas mais expressivas.
O IGCP vai emitir mais dívida a 10 anos na próxima quarta-feira. Na última vez que o fez foi em meados de novembro de 2021, altura em que as taxas ficaram na casa dos 0,3%. A partir do contacto que tem tido com os investidores, nestes dias após a mensagem do BCE, quais são as expectativas em relação a esse leilão?
As expectativas são de que o leilão será bem sucedido, claramente com níveis de taxas de juro que são aqueles que nós hoje observamos no mercado secundário. O que tem acontecido é que as taxas de juro no mercado primário, como é natural e saudável que aconteça, refletem aquilo que é a negociação no mercado secundário.
Significa que o Estado vai pagar mais por este financiamento…
Sim, mas as pessoas têm de ter em consideração que as taxas de juro negativas ou muito baixas que temos vivido nos últimos anos não são taxas que sejam sustentáveis e não são taxas que devem ser encaradas como taxas normais. Taxas normais são taxas positivas e a subida a que agora assistimos resulta de uma normalização da atividade económica e resulta da evolução que se tem observado ao nível da crise sanitária, com uma diminuição muito acentuada das restrições à mobilidade e à atividade económica, que está a regressar a patamares de normalidade. Se, de um modo geral, toda a atividade económica evolui num sentido de um ciclo económico normal, não se justifica que a política monetária não acompanhe essa evolução. Portanto, que saiamos de um contexto de taxas de juro anómalas, extraordinárias, necessárias para sustentar níveis de atividade económica muito baixos. Não digo que devemos olhar para esta subida das taxas de juro com regozijo, mas acho que devemos vê-la com alguma sobriedade no sentido em que é um movimento que nós gostaríamos que acontecesse.
Quer dizer que, na sua opinião, a subida das taxas está a acontecer por boas razões, isto é, atividade económica a melhorar, e não por más razões, uma inflação demasiado rápida?
Sim, por boas razões. É por boas razões que as taxas estão a subir. E também temos de salientar que os economistas avaliam se as condições financeiras são acomodatícias ou são restritivas – ou seja, se são favoráveis a uma expansão da atividade económica ou se, de alguma forma, está a tentar-se promover algum abrandamento para conter alguma exuberância. Nós estamos com taxas de juro ainda muito acomodatícias, mesmo que subam significativamente. Hoje em dia as taxas de juro reais estão em níveis mais baixos do que tínhamos há um ano.
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Na sua análise, a era de juros baixos é algo que está definitivamente para trás das costas? Não voltaremos a ver taxas de juro tão reduzidas no horizonte?
Eu gostava de acreditar que não, que não as voltaremos a ver tão cedo. Acho que esse contexto ficou para trás das costas, pelas boas razões que referi. Se nós acreditarmos que a atividade económica será retomada, dentro da normalidade, se voltarmos a ter as economias a crescer saudavelmente – na ordem dos 2,5% ou 3%, na Europa um pouco menos, historicamente – faz todo o sentido que as taxas de juro vão acompanhar esse regresso à regularidade. Mas repito: as taxas de juro continuam baixas se pensarmos nos períodos com maior estabilidade, ou seja, excetuando esta crise pandémica. Estamos com níveis do primeiro semestre de 2019 – não estamos tão longe assim dos níveis que vivemos antes da crise pandémica.
Como é que esta taxa de 1% a 10 anos se compara com o custo médio das emissões feitas no ano passado e como é que compara com o custo médio de todo o stock de dívida nacional?
O custo médio do stock da dívida no ano passado foi de 2% no ano passado, e o custo marginal [das novas emissões] foi de 0,6%. No ano anterior, 2020, tinha sido 2,2% o custo médio do stock e 0,5% no custo marginal, ou seja, das novas emissões feitas nesse ano. Em 2021 o custo marginal foi um pouco maior porque se optou por subir significativamente a vida média das emissões, para o dobro – ou seja, emitiu-se dívida com maturidades mais longas.
Hoje Portugal tem uma taxa absoluta de cerca de 1% – é o mesmo nível de juro absoluto que existia em abril de 2020, ou seja, mais ou menos desde o início da pandemia. Nessa altura, os mercados pediam à Alemanha uma taxa negativa de -0,3% ou -0,4%, hoje pedem 0,25% (positivos). Ou seja, o prémio de risco que temos agora é inferior. Como interpreta essa evolução dos prémios de risco, Portugal é visto como tendo menos risco agora?
Eu penso que sim, pelo menos é essa a perceção do mercado. As nossas necessidades líquidas de financiamento têm vindo a baixar e isso é reconhecido e avaliado positivamente pelo mercado. Mesmo nas agências de notação financeira, tivemos uma subida de rating no seguimento do outlook positivo que já existia antes – da Moody’s, no ano passado. E acreditamos que, face à evolução do stock da dívida pública, dos défices e da evolução da própria economia há condições para acreditar que esta avaliação positiva continua e que, mais dia menos dia, será refletida em alterações de perspetivas (outlooks).
Pelo menos…
Sim, pelo menos. Primeiro melhoria de perspetivas e, depois, alteração de notação.
Mas acha que o BCE vai ser mais audaz na retirada dos estímulos monetários, como os mercados financeiros parecem estar a prever? Ou acha que os investidores estão a precipitar-se?
Não digo que seja precipitação. Acho que há, sobretudo, um maior grau de incerteza, porque desde 2015 que o BCE tem sido muito interventivo no mercado, comprando a dívida pública – e estas compras de dívida acentuaram-se muito significativamente a partir de março de 2020. Com o programa de compras pandémico, não só o envelope de compras mensais aumentou muito substancialmente como, além disso, houve algumas limitações operacionais nas compras [que já eram feitas ao abrigo do anterior programa de intervenção] que foram removidas. E, agora, ao chegar a março, o programa pandémico acaba e evolui-se para a manutenção do programa de compras que já existia anteriormente – que tem limitações de compras mais ativas – e com montantes mais pequenos. E, em princípio, no final do ano, também esse programa pode desaparecer. O que todos nós desconhecemos é qual será o comportamento do mercado no momento em que o principal comprador de dívida pública europeia não digo desaparece, mas reduz muito substancialmente [a sua presença]… Esse é o grande fator de incerteza.
“Reduz substancialmente” a sua presença em que grau?
No ano passado, na maior parte dos mercados de dívida pública europeus o que nós verificámos foi que, se o BCE não comprou mais do que aquilo que foi emitido, comprou, pelo menos, o que foi emitido. Ou seja, na realidade, a maior parte dos emitentes soberanos europeus acabou por ter como destinatário final para os seus títulos não os investidores do setor privado mas o setor público – neste caso, o Eurossistema. A realidade em 2020-2021, a esse respeito, é muito avassaladora. E, no momento em que o BCE retrocede e a sua intervenção no mercado se reduz, isso assusta um bocadinho – pela dimensão. É claro que há aqui fatores mitigantes. Um deles é que o BCE vai eliminar as compras líquidas, reduzindo-as significativamente ao longo deste ano, mas mantém os seus planos de reinvestimento pelo menos até ao final de 2024. E isso é um fator significativo: o BCE irá absorver entre um terço e metade do que for refinanciado – mesmo que não existam novas compras líquidas.
Mesmo assim “assusta um bocadinho”, dizia…
Assusta um bocadinho, sobretudo porque o que está a começar a ser descontado no mercado é essa incerteza sobre a capacidade de absorção por parte do mercado na ausência – ou na redução significativa da intervenção do BCE. Sendo que o BCE não vai sair, não vai abandonar o mercado, como disse. A liquidez que existe no sistema ainda é muito significativa, quando olhamos por exemplo para os balanços dos bancos… Um segundo aspeto é que o BCE, apesar das taxas reais serem baixas, também tem consciência de que o aspeto nominal não é despiciendo.