O choque eleitoral
A Assembleia sente que já não representa o povo; e este já não se revê nos seus deputados, cujos mandatos não dignificam os votos.
Paulo Morais
Há um mal-estar generalizado no sistema democrático. Os seus principais sintomas residem no alheamento da população face à vida política, numa abstenção crescente e na descrença no regime. O símbolo máximo desse mal-estar é personificado pelo Parlamento, que parece não cumprir as funções constitucionais que lhe estão consagradas. Não emana legislação adequada aos interesses das populações; nem tão pouco exerce um papel de fiscalizador da actividade governativa, como seria de esperar num sistema semi-parlamentar. A Assembleia sente que já não representa o povo; e este já não se revê nos seus deputados, cujos mandatos não dignificam os votos em que se legitimam. O coração do regime constitucional de Abril está assim paralisado, é um órgão quase inútil. Precisa de um choque: do choque eleitoral.
A culpa desta situação não é obviamente do eleitorado, na medida em que este não tem voz efectiva na escolha dos candidatos a deputados que integram as listas partidárias. São os partidos que designam os nomes, numa lógica, muitas das vezes, contrária à vontade das populações.
Neste triângulo constituído pelo povo, políticos e sistema de eleição, é fácil assacar responsabilidades. Como os políticos, os actores do sistema, não podem culpar os cidadãos e recusam assumir defeitos próprios, acusam o sistema eleitoral. Há pois que mudar, respeitando a legítima expectativa da opinião pública de que se fossem os eleitores a designar, de forma próxima, os deputados, a Assembleia da República teria maior qualidade.
A aproximação dos cidadãos à política, fazendo-os participar das escolhas, só é possível através de uma de duas formas: ou pela adopção de um sistema eleitoral que contemple o designado “voto preferencial”, como acontece por exemplo na Dinamarca, através do qual o eleitor pode ordenar a sua preferência na lista partidária em que vota; ou, então, através de círculos uninominais, sistema adoptado no Reino Unido ou em França, e que parece ser a solução ora preconizada pelos dois maiores partidos portugueses.
Sucede que os círculos uninominais aparecem habitualmente associados a sistemas eleitorais maioritários. Como estes estão vedados em Portugal, em nome da proporcionalidade e por imperativo constitucional, a forma de garantir a coexistência de círculos uninominais é justamente a criação, em paralelo, de um círculo nacional que compense a proporcionalidade. Como acontece, por exemplo, na Alemanha.
Este passo é estritamente necessário para a sobrevivência do regime, na medida em que devolve o poder de escolha aos cidadãos. Os círculos uninominais aproximarão seguramente as pessoas dos partidos. Mas, por si só, esta medida não vivifica a democracia. Até porque, mais do que aproximar os cidadãos da vida política, o que é verdadeiramente essencial é aproximar os partidos das pessoas. E esta revisão será talvez a última oportunidade de reaproximar, de facto, eleitos e eleitores.
Para que os partidos sejam efectivamente obrigados a aproximar-se do povo português, dos seus anseios e preocupações, é necessário que todos possam exprimir-se, mesmo os mais desiludidos, e que a expressão da sua vontade seja consequente. Tem de se atribuir também peso eleitoral aos abstencionistas, para que a democracia não possa ser capturada por partidos autistas, autocráticos, estribados, ilegitimamente, numa reduzida base eleitoral. Veja-se, por exemplo, o recente exemplo das eleições em Lisboa; em que um presidente eleito com apenas dez por cento dos eleitores, condiciona o quotidiano da totalidade da população.
Para aproximar os partidos não apenas dos seus eleitores, mas de todos os eleitores, a reforma da lei eleitoral para a AR devia contemplar uma cláusula que obrigasse a um número explícito, determinado, de votos para a eleição de cada um dos deputados. Desta forma, obrigar-se-iam os partidos a apresentar candidatos que efectivamente garantissem a adesão dos eleitores, que agradassem mais ao povo do que aos aparelhos partidários; ou seja, candidatos de qualidade, numa perspectiva democrática.
Estariam, assim, representados no parlamento todos os cidadãos, mesmo os abstencionistas activos. Estes seriam representados… por cadeiras vazias. E sempre que estas fossem maioritárias no hemiciclo, o regime deveria sucumbir.
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Paulo Morais, Director do IEEUL – Universidade Lusófona