“Esta guerra não é para mim.” Seis desertores recordam o que viveram
A história da Guerra Colonial também se conta por aqueles que fugiram dela. Entre 1961 e 1974, pelo menos 9000 homens desertaram. Muitos fizeram-no a partir da frente de batalha, em Angola, Guiné ou Moçambique. Houve quem se entregasse ao “inimigo”, que se transformou em salvador. Outros escaparam para países vizinhos, enfrentando a prisão e a tortura
Foi logo no primeiro dia em que chegou a Angola que Mário Pádua tomou a decisão. Tinha acabado de desembarcar em Luanda a bordo do paquete “Niassa”, juntamente com outros dois mil homens que constituíam o primeiro grande contingente de tropas portuguesas enviadas para o território, onde a guerra pela independência eclodira semanas antes. Milhares de colonos esperavam-nos em êxtase na Avenida Marginal. Acotovelavam-se nos passeios, nas varandas e até em cima de telhados para aplaudir a sua chegada e assistir à parada dos batalhões. Após o desfile, a multidão rodeou-os e muitos apelaram aos soldados recém-chegados para que, sem piedade, abatessem os negros até à sua eliminação. “Matem-nos a todos”, gritavam. Mário viu-lhes os olhos raiados de ódio e sentiu apoderar-se do seu corpo um tremor de desconforto e inquietação. “Esta guerra não é para mim”, pensou. Assim que conseguisse, ia fugir dali.
Quando chegou, a 1 de maio de 1961, “vivia-se um ambiente geral de barbárie”. Mês e meio antes, a 15 de março, a União das Populações de Angola (UPA), uma das forças independentistas, começara no norte uma revolta sangrenta que massacrou centenas de brancos e mestiços, em assaltos de extrema violência a fazendas, postos administrativos, vilas e tudo o que na região representava o domínio português. Numa retaliação cega, organizaram-se milícias de colonos que não hesitavam em disparar sobre os negros que com eles se cruzassem no caminho. Na parada militar, relataram aos soldados as suas excursões aos musseques “como se fosse um desporto”, recorda Mário Pádua, hoje com 86 anos. “Diziam-nos, orgulhosos: ‘Matamos uns 30 por dia. Vamos de carrinha à noite e atiramos em todos os que andam à solta.’ Ao ouvir aquilo, comecei a sentir-me moralmente sujo por estar ali.”
Esse sentimento não mais parou de crescer até se tornar insuportável. Ao contrário da esmagadora maioria das tropas, Mário conhecia Angola. Vivera lá desde os 7 anos, até vir para a metrópole estudar Medicina. Ao crescer, foi-se apercebendo aos poucos da enorme injustiça da sociedade colonial, que tratava os negros “como se não valessem nada”, espoliados de direitos, de instrução e assistência médica e condenados à exploração e à miséria. Quando chegou à Universidade de Coimbra, aderiu ao PCP, crente na construção de um mundo onde todos fossem iguais.
Tinha acabado de terminar o curso de Medicina quando recebeu a ordem de mobilização. Mas “não estava na disposição de ir combater por uma causa em que não acreditava”. Na véspera de embarcar, escapuliu-se do quartel em Abrantes determinado a não voltar. Nessa noite, reuniu-se com um funcionário do partido para lhe dizer que se recusava a ir para África. Esperava apoio, mas não o recebeu. O PCP defendia a independência dos povos africanos, mas condenava a deserção dos seus militantes. Entendia que deviam ir à guerra para lá tentar doutrinar as tropas contra ela. Desiludido e contrariado, acatou as instruções para partir. Conseguiu regressar ao quartel pouco depois da meia-noite, sem que, no meio dos preparativos para a partida, alguém se tivesse apercebido da sua ausência.
Sentia-se angustiado, mas não imaginava o que iria encontrar nos meses seguintes. À crueldade da UPA, o exército português respondeu com terror. Incendiaram-se aldeias inteiras e sucederam-se os massacres. À medida que o batalhão 88, que integrava como médico, avançava para norte, em direção ao Negage, Mário testemunhou a desumanidade. Por onde passavam, os soldados pegavam fogo às palhotas com archotes improvisados. Um capitão orgulhava-se de não gastar uma bala nas execuções. Mandava arrancar aos prisioneiros os testículos e o pénis com alicate, decepar-lhes os membros à catanada e enterrá-los até à cabeça antes de os esmagar. “Um alferes da minha companhia colecionava orelhas e guardava-as num frasco de álcool”, recorda. Sem sucesso, tentou interceder. “Disse ao meu capitão que não era legítimo tratar os prisioneiros daquela maneira. Respondeu-me: ‘Os soldados precisam de ódio para combater. Na guerra, a piedade faz mal’.” Um dia, conseguiu ler às escondidas papéis que o capitão deixara em cima da mesa. “A ordem estava escrita: matar tudo o que fosse vivo acima do Negage, incluindo mulheres e crianças.”
Como médico, Mário não participava ativamente nas operações e até se recusara a receber a arma de serviço. Estava ali para salvar vidas, não para as tirar. Mas era terrível ter de suportar o hábito de ouvir contar ou de assistir sem poder fazer nada. Naquela região do norte onde começara a guerra, o horror estava por toda a parte. “À entrada das vilas de brancos por onde passávamos estavam sempre dois postes onde tinham sido espetadas cabeças de negros degoladas. Era uma mensagem para os assustar. Essa imagem nunca mais me saiu da memória”, conta.
O que mais receava era um dia tornar-se insensível. Deixar de se chocar com o que via. “Anima-me uma vontade desesperada de impedir que o sorriso, o contacto diário com os assassinos me transforme”, escreveu no seu diário, a 18 de maio de 1961. Cinco meses depois, na primeira oportunidade que teve, fugiu. Tornou-se o primeiro oficial português a desertar. Mas esteve longe de ser o único.
Segundo dados recolhidos junto dos arquivos histórico-militar, da PIDE e da defesa nacional e publicados há três anos pelos investigadores da Universidade de Coimbra Miguel Cardina e Susana Martins, entre 1961 e dezembro de 1973 pelo menos 8639 homens desertaram das Forças Armadas portuguesas. O número, no entanto, “peca por defeito”, explica Miguel Cardina, por existirem nos arquivos lacunas pontuais em certos anos e sectores militares, como a Marinha e a Força Aérea, e por contabilizar apenas as deserções bem sucedidas, deixando de fora os que foram capturados após a fuga.
Entre os desertores, a maioria fugiu a partir da metrópole. As fugas tendiam a ocorrer pouco tempo antes do embarque para um dos teatros de operações, envolvendo jovens sem experiência de guerra nas colónias ou que já tinham sido mobilizados, mas se encontravam em Portugal a gozar uma licença a meio da comissão. Ainda assim, foram muitos os que fugiram a partir da frente de batalha, num terreno particularmente adverso e enfrentando enorme risco: 2257 em Angola, 1227 em Moçambique e 214 na Guiné, segundo os números apurados pelos dois historiadores. A qualquer momento, podiam ser capturados pelo exército, esperando-os uma pena de prisão, ou mortos pelo inimigo. Uns entregaram-se diretamente às forças independentistas, sobretudo na Guiné, onde o PAIGC favorecia as deserções de portugueses. Outros escaparam para países vizinhos, sujeitos a enfrentar a cadeia, sob acusação de espionagem.
Entre os desertores, a maioria fugiu a partir da metrópole. As fugas tendiam a ocorrer pouco tempo antes do embarque para um dos teatros de operações
Foi o que aconteceu a Mário Pádua. Todos os dias pensava em fugir, mas era impossível. Partir do coração de Angola, sem rumo nem caminho, era morte certa. Só ao fim de cinco meses, surgiu a oportunidade por que ansiava. O seu batalhão fora destacado para Maquela, uma vila a escassos quilómetros da fronteira com o Congo. Mário acreditou que o país, que apenas um ano antes se tornara independente, não hesitaria em dar asilo ao desertor de um exército colonial. Só tinha de lá chegar e, para isso, arquitetou um plano meticuloso. Estimou em 70% a probabilidade de escapar com vida, o que na altura lhe pareceu razoável. O que se passou depois, porém, haveria de reduzir a quase nada a hipótese de sobreviver.
Diante do pelotão de fuzilamento
Eram cinco da tarde do dia 23 de outubro de 1961 quando Mário se meteu num jipe e partiu, acompanhado pelo cabo Alberto Pinto, de quem se tornara amigo. Algum tempo antes, tinha comprado uma espingarda de caça e todas as tardes os dois saíam do aquartelamento com o pretexto de ir apanhar galinholas e outros animais. Era a oportunidade para poderem explorar o melhor caminho até à fronteira, ao mesmo tempo que habituavam os camaradas a ausências longas, para que não estranhassem quando chegasse o ‘dia D’. Seguiram por uma picada até o mato não os deixar avançar mais e daí continuaram a pé.
Desorientados, acabaram por se perder e já era noite quando encontraram uma cabana isolada onde um jovem vivia com o tio. O médico ofereceu-lhes uma nota de 500 angolares para que aceitassem guiá-los até ao Congo. Horas depois, estavam junto ao marco que assinalava a divisão entre os dois territórios. Ao longo da fronteira, já do outro lado, erguiam-se centenas de cubatas de refugiados angolanos fugidos à repressão das tropas coloniais.
Descalçaram as botas para amortecer o barulho dos seus passos. Se fossem apanhados, vestidos com o uniforme militar português, o mais certo era não escaparem com vida. Os ‘guias’ voltaram para trás e os dois prosseguiram madrugada dentro, escondidos entre o capim, até chegarem finalmente a uma aldeia congolesa.
A ideia era entregarem-se ao povo para depois pedirem asilo. Mas o pesadelo começou aí. Em francês, tentaram explicar aos habitantes, acordados pela sua chegada, que eram desertores, mas ali ninguém conhecia a palavra, muito menos o conceito. Parecia-lhes inconcebível que soldados brancos se recusassem a combater contra africanos. Tomaram-nos por infiltrados e avançaram sobre eles com uma violência brutal. “Amarraram-nos as mãos e os pés com tamanha força que as cicatrizes demoraram anos a desaparecer. Espancaram-nos durante horas”, lembra Mário Pádua. De manhã, quando chegou a polícia, a tortura piorou. Levados para a esquadra, bateram-lhes ininterruptamente com bastões e cassetetes durante dois dias e duas noites para que confessassem ser espiões. Ao terceiro dia, arrastaram Mário pelos ombros até ao exterior do cárcere e encostaram-no a um muro alto, de frente para um pelotão de fuzilamento. “Apontaram-me as armas durante uns minutos. Estava certo que tinha chegado a minha hora. Mas estava calmo. Não havia nada que pudesse fazer. Aceitei a morte sem arrependimento nem pena”, conta.
Mas sobreviveu. Ao fim de uns minutos, os homens dispararam para o ar. Não passara de uma encenação para o fazer confessar. Após uma semana de tortura, enviaram-nos para a prisão de Makala, uma das cadeias de pior fama no país, onde durante quatro meses foram deixados à fome, alimentados a uma malga de arroz por dia, e várias vezes voltaram a enfrentar a morte de frente. Como no dia em que um guarda, enlouquecido pela droga, disparou indiscriminadamente sobre as celas e só por um milagre não lhes acertou. Foram libertados a 26 de fevereiro de 1962, quando a Assembleia Nacional Congolesa aceitou finalmente conceder-lhes asilo político.
Através de contactos estabelecidos com o MPLA, Mário viajou para a antiga Checoslováquia e, meses depois, para a Argélia, onde acabou por conhecer numa conferência Amílcar Cabral, o carismático líder do PAIGC, movimento independentista na Guiné. Tocado pela justeza da luta dos povos pela sua própria terra, aproximou-se dele e ofereceu-se como médico para socorrer os guerrilheiros feridos na Guiné. “Sentia que, em Angola, tinha participado numa guerra contrária ao direito e à humanidade, e a tudo aquilo em que acreditava. Por isso, sentia-me obrigado a resgatar essa minha participação e a mostrar que os portugueses não eram todos iguais àquele grupo criminoso de gente que os massacrava.” Entre 1967 e 1969, prestou assistência médica na Guiné, do outro lado das trincheiras.
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Mário Pádua (1) foi o primeiro oficial português a desertar. Fugiu de Angola em outubro de 1961, em choque com os horrores que presenciara na guerra. José Sentieiro (2), que fugiu da Guiné em 1970, com a mala que lhe deu Amílcar Cabral e o bilhete de avião pago pelo PAIGC. Fernando Cardeira (3), exibindo as fotos que tirou no dia em que desertou com outros nove oficiais
Não foi o único a mudar de lado. Convicto defensor do direito dos povos africanos à independência, também Jacinto Veloso, piloto aviador, desertou das Forças Armadas Portuguesas para ajudar o movimento nacionalista, no seu caso em Moçambique. No final de 1961, foi para lá enviado com a missão de organizar as bases aéreas, sobretudo no norte, onde o Governo colonial calculava que viesse a rebentar a revolta dos rebeldes e onde, efetivamente, a guerra haveria de começar três anos depois. Nessa altura, porém, já tinha fugido. Desertou em 1963, numa aparatosa fuga aos comandos de um avião.
A bênção de Nasser
Como Mário Pádua, também Jacinto crescera em África. Provenientes de uma aldeia perto de Tondela, os seus pais haviam imigrado para Lourenço Marques (atual Maputo) à procura de uma vida melhor. Com pouca instrução, o pai tornou-se um modesto funcionário da Câmara Municipal, com um salário que nunca lhes garantiu o desafogo com que sonhavam. À época, a cidade dividia-se em duas zonas: a do “caniço”, onde os negros viviam em palhotas sem condições, e a do “cimento”, onde moravam os brancos. Jacinto vivia a meio caminho. “Morávamos na transição, onde a maioria das casas era feita de madeira e zinco, como a dos meus pais. Por viver na periferia da zona branca, sempre tive bom convívio com os negros e mistos da minha idade. E estranhava que não andassem comigo na escola. Só mais crescido percebi a verdadeira dimensão da discriminação que sofriam”, conta Jacinto Veloso, hoje com 84 anos.
Bom aluno no liceu, acabou por ganhar uma bolsa de estudo para vir fazer a universidade a Lisboa, onde chegou em 1955. Só aí ganhou consciência política. Tornou-se ativo na luta estudantil e envolveu-se na campanha de Humberto Delgado. Estava determinado a combater o regime fascista e o colonialismo, quando foi mobilizado para Moçambique, como alferes da Força Aérea, depois de ter completado a Academia Militar e o curso de aviação. “Fui destacado para a Beira, com a missão de fazer o ensaio dos aviões que eram lá montados e ajudar a preparar o início da guerra. Mas tinha decidido desde o início que ia desertar antes de ela começar”, lembra.
A 12 de março de 1963, a pretexto de levar um velho amigo do liceu a dar uma pequena volta de avião, Jacinto levantou voo e fugiu, rumo ao Tanganica (atual Tanzânia), país que só recentemente se tornara independente e onde acreditava vir a conseguir asilo. Ao aterrarem em Dar es Salaam, no entanto, foram presos por suspeita de espionagem. Durante dois meses partilharam cela na cadeia central da cidade, até que finalmente o Presidente da República aceitou libertá-los, na condição de abandonarem o território no prazo de dez dias. Só que eles não tinham para onde ir.
“Voltar a Portugal, a Moçambique ou a outra das então colónias portuguesas seria um suicídio. Então andámos em Dar es Salaam de embaixada em embaixada a pedir apoio. Pensámos que os países de leste iam acolher-nos porque eram favoráveis à independência, mas nem a União Soviética nem a Checoslováquia quiseram saber de nós. Também desconfiavam que éramos espiões do exército português”, explica. A sua história, que a quase todos parecia inverosímil, saía diariamente nos jornais locais e teve eco em vários países africanos. Nasser, líder da revolução que fundara o Egito moderno e então Presidente do país, acreditou nele. Mandou o embaixador em Tanganica abordar Jacinto para lhe entregar todos os documentos necessários e até as passagens de avião.
Jacinto Veloso, piloto da Força Aérea, desertou de Moçambique ao comando de um avião. Tornou-se conselheiro militar da Frelimo, ajudando a preparar os combates a partir do exterior. Após a independência, foi graduado general pelo primeiro Presidente moçambicano, Samora Machel
Chegado ao Cairo, foi recebido pelo próprio Nasser, que lhe providenciou trabalho numa associação de apoio às lutas de libertação em África. Foi lá que lhe chegou o convite da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) para se tornar, a partir do exterior, seu conselheiro político e militar. Jacinto aceitou. Até hoje. Nos anos seguintes, integrou a representação oficial da Frelimo na Argélia, organizou a escola dos refugiados moçambicanos na Tanzânia e, à distância, sem nunca pegar numa arma, ajudou a preparar os combates contra as tropas coloniais. Após o 25 de Abril, coube-lhe a ele preparar o acordo de cessar-fogo com o Governo português, assinado em Lusaca em setembro de 1974. Próximo de Samora Machel, primeiro Presidente moçambicano, Jacinto foi graduado general depois da independência. Acabou por ser ministro de várias pastas e ainda hoje é conselheiro de Estado.
A mala de Amílcar Cabral
Na fase inicial, a contestação à guerra e a deserção permaneceram praticamente circunscritos a pequenos círculos mais politizados, sobretudo entre a juventude universitária. Nos primeiros três anos, o número anual de desertores manteve-se abaixo dos cem, valor que triplicou em 1964. Desde aí continuou sempre a subir, ultrapassando os mil por ano a partir do final da década. Só em 1973, 1405 homens desertaram. O aumento das fugas refletiu o cada vez maior desgaste psicológico e social provocado pelo arrastar do conflito e acompanhou o crescimento do sentimento anticolonial entre a população. Para isso, foi importante o ativismo de alguns grupos de católicos progressistas, que difundiram jornais clandestinos contra a guerra e organizaram duas vigílias pela paz com grande impacto público, assim como a emergência, sobretudo a partir de 1970, de movimentos de extrema-esquerda como o MRPP que, ao contrário do PCP, apelavam ativamente à deserção dos seus militantes.
Foram muitos os militares portuguesesque fugiram a partir da frente de batalha: 2257 em Angola, 1227 em Moçambique e 214 na Guiné
Mas nem todas as deserções tinham motivação ideológica, frisa o historiador Miguel Cardina. “Muitas resultavam de fatores infrapolíticos, como o choque provocado pela experiência de guerra, o medo de morrer ou estar farto da hierarquia militar, por exemplo. E também havia casos de indisciplina punidos com castigos e que acabavam por estar na origem da deserção”, explica. Foi o que aconteceu com José Sentieiro, fuzileiro naval que fugiu da Guiné a 18 de fevereiro de 1970. “A minha consciência política era pouca ou nenhuma. Desertei porque tive uma desavença com o meu capitão”, conta.
Oriundo de uma família pobre de Torres Novas, José começara a trabalhar no campo ainda criança. Aos 17 anos, ofereceu-se como voluntário para a Marinha, porque ouvira dizer que lá “se comia e recebia bem”. Dois anos depois, foi mobilizado. Estava na Guiné há menos de três meses quando recebeu um telegrama a informar da morte da mãe. Pediu uma licença para vir ao funeral, mas foi recusada. José reagiu mal e a troca de palavras com o capitão valeu-lhe um castigo. “Puseram-me a cavar de manhã à noite. Não gostei. Um indivíduo percebeu a minha revolta e veio dizer-me que ia fugir. Perguntou-me se queria ir com ele e eu respondi: ‘vamos embora’. Foi uma decisão impulsiva.”
Um terceiro camarada juntou-se a eles e no dia seguinte partiram de Ganturé, onde estavam estacionados, a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal. Às 16h, disseram que iam à caça e meteram-se a caminho, “sem plano nenhum”. Andaram durante horas. Na manhã seguinte, avistaram uma dezena de guerrilheiros do PAIGC e aproximaram-se deles, agitando um lenço branco em sinal de rendição. “Entregámos-lhes as armas e dissemos: ‘Estamos descontentes com a guerra e quisemos vir embora.’ Eles trataram-nos muito bem. Nunca nos interrogaram para saber se éramos espiões. Receberam-nos com confiança”, lembra José Sentieiro, hoje com 72 anos.
Os homens levaram-nos para junto de uma aldeia onde estiveram alguns dias, sempre alimentados pela população “com boa comidinha”. Até que um informador da PIDE soube da sua presença e denunciou-os. Em retaliação, a tropa portuguesa bombardeou a pequena povoação e mandou um destacamento de fuzileiros à sua procura. José e os outros dois camaradas fugiram com os guerrilheiros para o interior do mato, onde permaneceram escondidos duas semanas, enquanto aguardavam autorização para entrar no Senegal. De lá, apanharam uma camioneta para Conacri, onde permaneceram num acampamento do PAIGC. Foi aí que conheceu Amílcar Cabral. E esse encontro mudou-lhe a vida. “Era um homem muito humano, muito justo. Dizia-nos: ‘Nós lutamos contra o colonialismo, não contra os portugueses.’ Falava connosco sobre as razões da sua luta e eu percebi que eles tinham a justiça do lado deles. Isso mexeu muito comigo. A minha tomada de consciência política começou aí”, conta.
Em Conacri, onde ficaram até agosto, “a vida era difícil”. A guerrilha não tinha dinheiro e escasseava o que comer. Durante cinco meses, faziam as refeições todos juntos, mas havia diferenças. Enquanto os guerrilheiros comiam apenas arroz, sem mais nada, José e o outro camarada (o terceiro já abandonara o território) tinham, além disso, direito a baguetes e bananas. Amílcar Cabral sabia que não estavam habituados à fome, ao contrário dos seus homens. Por isso, dera-lhes 30 pesos por dia para comprarem pão e fruta. “Tudo o que tinham, partilhavam connosco. E davam-nos até o que não tinham para eles.”
A ajuda do carismático líder do PAIGC, que acabaria por ser assassinado três anos depois, foi ainda além disso. Em julho, Amílcar Cabral foi recebido no Vaticano pelo Papa Paulo VI, juntamente com Agostinho Neto, do MPLA, e Marcelino dos Santos, da Frelimo, numa audiência inédita que tornou claro o apoio da Santa Sé à independência dos povos africanos e deixou o Estado Novo ainda mais isolado na questão colonial. Nessa viagem, Cabral tratou de todos os preparativos para o regresso de José à Europa. Conseguiu arranjar-lhe emprego na Holanda, assegurou as autorizações de viagem e comprou-lhe as passagens. Primeiro para a Argélia, onde José daria o seu testemunho à Rádio Voz da Liberdade, e de lá para Amesterdão.
Com tudo tratado, José e o camarada com quem havia desertado deixaram Conacri no mês seguinte. Antes de se despedir deles, Amílcar Cabral ofereceu-lhes uma mala e perguntou se tinham alguma coisa para levar. Os dois homens não tinham nada, além do uniforme militar português que ainda traziam vestido. Cabral levou-os então a um armazém onde o movimento guardava doações de roupa e disse-lhes para escolherem o que quisessem. Depois, já no aeroporto, meteu a mão ao bolso e deu-lhes todo o dinheiro que tinha com ele: 52 dólares. “Devemos-lhe tudo”, diz.
José partiu determinado a lutar contra a ditadura e o regime colonial. Na Holanda, envolveu-se numa associação de refugiados e desertores e começou a fazer trabalho político junto dos emigrantes. A todos, contava a sua história e repetia os argumentos que tinha aprendido com aqueles que outrora vira como inimigos.
Máquinas de matar
Nélson Anjos, que desertou na primavera de 1970 aproveitando uma licença de férias na metrópole a meio da comissão de serviço, veio com igual determinação. Partira para África disposto a combater para que Portugal continuasse a estender-se “do Minho a Timor”, como aprendera na escola. Mas a experiência mudou-lhe a vida. “Na Guiné, todo o meu edifício ideológico colapsou. Quando lá cheguei, vi que muitas das pessoas nem sequer falavam português. Aquilo era tudo menos Portugal. Então, pensei: ‘Afinal estamos aqui a defender o quê? Esta terra não é nossa. É deles. E eles têm o direito de a reclamar.’” Nesse momento, decidiu que não podia continuar numa guerra que descobrira ser injusta.
Assim que se aproximou a data da licença, tratou secretamente de todos os preparativos para não mais voltar. Um camarada da companhia, de quem se tornara próximo, deu-lhe o contacto de pessoas que, em Portugal, podiam ajudá-lo a “dar o salto” para a Europa. Quando aterrou na Portela, estavam à espera dele. Eram operacionais da LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucionária), um movimento de luta armada contra a ditadura que tinha sido criado em França por Palma Inácio e Camilo Mortágua, entre outros. Dias depois, levaram-no de carro até Vilar Formoso e atravessou a fronteira a pé. Chegado a Paris, juntou-se à oposição portuguesa no estrangeiro.
Três anos mais tarde, em 1973, faria o caminho inverso, regressando a Portugal clandestinamente, com documentos falsos, para recrutar mais pessoas para a causa. Mas foi rapidamente apanhado pela PIDE. Condenado a três anos e meio de prisão, foi fechado na cadeia de Peniche, de onde seria libertado após o 25 de Abril.
Da guerra, ainda recorda o ódio que viu estampado no rosto de alguns soldados, sobretudo entre as tropas especiais. “Eram psicopatas produzidos pelo sistema, que só queriam cortar pessoas aos bocadinhos. Uma espécie de pequenos Rambos, homens convertidos em máquinas de matar”, repudia Nélson Anjos, hoje com 76 anos.
Foi essa a formação dada a José Cruz, que em 1971 embarcou para Angola, integrado na 23ª companhia de comandos. “Faziam-nos uma lavagem cerebral terrível para nos transformar em máquinas de guerra, seres sem coração, que só pensam em liquidar o inimigo. No quartel, ao almoço, passavam constantemente imagens de soldados portugueses mortos pelas forças independentistas para nos alimentar o ódio”, lembra. José não se deixou converter. Antes de ser mobilizado, passara noites a ouvir as emissões clandestinas da Rádio Voz da Liberdade, gravadas em Argel e que difundiam propaganda anticolonial. E partiu para África já convicto de que era uma guerra injusta.
Em Luanda, inventou um problema de saúde e foi excluído do curso de comandos, mas enviado para o curso de atirador. Garante que nunca disparou sobre ninguém. Mas pesou-lhe sempre na consciência a granada que teve ordens para esconder sob uma pele de palanca, que no mato alguém tinha posto a secar ao sol. “Quando essa pessoa fosse buscar a pele, aquilo explodia. Mas não sabíamos quem seria. No dia seguinte, ouvimos o barulho da detonação. Quem quer que tenha sido, lá ficou. E isso atormentou-me. Ajudei a montar aquela armadilha e senti uma culpa que ficou para sempre”, desabafa José Cruz, hoje com 71 anos.
Com o álcool, tentava matar a “falta de afetos” e a ansiedade que nele sentia crescer. Chegou a beber 40 cervejas por dia. O que mais o chocava era a miséria que via à sua volta e a imagem das crianças esfaimadas que corriam para lamber do chão os restos de azeite das latas de sardinha que os soldados comiam e atiravam, vazias, para o mato. “Os negros não eram tratados como humanos. Aos poucos, fui ganhando uma tal raiva interior que decidi ir-me embora. Aquilo não era para mim”, recorda.
Um dia, em maio de 1972, subornou o homem que semanalmente ia entregar-lhes produtos frescos para que pusesse uma carta no correio civil, já que a correspondência militar não escapava à censura. Era uma carta para o seu irmão, pedindo-lhe para lhe enviar um telegrama fingindo que a mãe estava a morrer. Quando chegou, o oficial condoeu-se e deu-lhe quase um mês de licença para vir a Portugal, supostamente despedir-se dela. José não mais voltou. Clandestinamente, cruzou o rio Minho numa barcaça, entre Melgaço e Monção, levando apenas a roupa do corpo e um saco com a carteira, o estojo da barba e um maço de tabaco. Entre boleias, camionetas e comboios chegou à fronteira com França, junto a San Sebastián. Sem saber nadar, atravessou a pé, com água até à cabeça, um rio estreito de corrente forte onde por pouco não perdeu a vida. Em Paris, começou a trabalhar nas limpezas, mas acabou a tirar o curso de Economia. Só regressaria a Portugal em 1979.
“Um homem não foge”
Legalmente, eram considerados desertores os homens que, já estando integrados numa força, abandonavam o posto ou se ausentavam mais de cinco dias consecutivos. Aos nove mil que o fizeram, juntam-se, segundo os dados recolhidos pelos historiadores da Universidade de Coimbra, pelo menos dez mil a vinte mil “refratários” que também recusaram a guerra. A categoria abrange os que, tendo sido aprovados na inspeção, fugiram de Portugal antes de se apresentarem na unidade onde deveriam fazer a recruta para embarcar para África.
Somado, o número de desertores e refratários da Guerra Colonial é proporcionalmente superior ao registado nas Forças Armadas francesas durante a guerra da Argélia, por exemplo. Ainda assim, o fenómeno permaneceu pouco falado até hoje. Ao contrário do que acontece noutros países, em Portugal multiplicam-se monumentos aos ex-combatentes, mas não há nada que recorde os desertores. “Nem sequer uma rua”, diz o investigador Miguel Cardina, que aponta vários fatores para a quase invisibilidade a que foi votado o tema nas últimas décadas, incluindo do ponto de vista historiográfico. Desde logo, o facto de o 25 de Abril ter sido feito por militares, que passaram a ser vistos como os heróis da democracia. A rutura com o Estado Novo restaurou a imagem das Forças Armadas, ajudando a apagar na memória coletiva a sua associação ao fascismo e à guerra.
“Não me importo nada com o peso da palavra. E tenho muito orgulho em dizer abertamente: ‘Eu fui desertor’”, diz Fernando Cardeira
Por outro lado, explica, persiste em muitos sectores a ideia de que ir à guerra era um “dever patriótico” que cabia aos jovens cumprir, mesmo que extremamente difícil e doloroso e até mesmo se não concordassem com ela. No total, ao longo dos 13 anos de conflito, mais de 800 mil homens foram mobilizados. 8830 perderam a vida e 15 mil ficaram com deficiência permanente. Além dos muitos milhares para sempre atingidos pelo trauma.
Cinquenta anos volvidos, “muitas perguntas difíceis permanecem por fazer”, frisa o historiador. “Quantos massacres foram cometidos? Quem os cometeu? O que significa ter lá estado? Qual o grau de responsabilidade de cada um? Habitualmente, são questões colocadas após terminarem as guerras, quando as sociedades enfrentam esse passado. Mas Portugal lida mal com a memória e isso nunca aconteceu”, diz.
A grande maioria nunca sentiu que ir à guerra fosse uma escolha. A mobilização era obrigatória e fugir tinha custos demasiado pesados. O Código de Justiça Militar punia a deserção com uma pena que podia ir até 20 anos de cadeia. Além disso, desertar implicava não poder voltar ao país enquanto durasse o regime e ninguém sabia quanto tempo a ditadura levaria a cair. Por outro lado, a “lógica de masculinidade” dominante impunha ao homem um certo tipo de comportamento. “Culturalmente, o homem honrado, corajoso, era aquele que ia à guerra. Não era aquele que fugia”, afirma Miguel Cardina.
Daí que, em português, a palavra desertor mantenha uma carga profundamente pejorativa. Fernando Cardeira, que desertou em 1970 juntamente com outros nove oficiais, um mês antes da data em que era suposto embarcarem para África, lida bem com isso. “Não me importo nada com o peso da palavra. E tenho muito orgulho em dizer abertamente: ‘Eu fui desertor.’”
Aos 18 anos, tinha a guerra em Angola acabado de começar, Fernando concorrera à Academia Militar para lá fazer o curso de Engenharia. Não sentia qualquer vocação militar, mas não tinha meios para vir estudar para Lisboa e só o regime de internato lhe permitia fazê-lo. Foi lá que ouviu vários oficiais, vindos da guerra, contarem as “proezas” que tinham cometido. “Ouvia-os diariamente a descrever, com orgulho, autênticas barbaridades. Foi um choque terrível para mim. E fez-me decidir que jamais iria”, recorda. Em 1968, no último ano do curso, quando já havia sido promovido a alferes e já ganhava ordenado, quis desvincular-se para sempre do Exército. Para isso, teria de pagar uma avultada indemnização ao Estado: 35.500 escudos, o equivalente, no seu caso, a ano e meio de salários. Pediu um empréstimo e saldou a dívida, não deixando alternativa ao Exército senão aceitar o requerimento. Acabou por sair da Academia Militar com outros 20 colegas, que usaram o mesmo expediente.
Como punição, foram reclassificados em atiradores de infantaria, o posto mais baixo e aquele onde se corre maior perigo em combate. Nos meses seguintes, Fernando foi colocado nos quartéis de Mafra, Leiria e Caldas da Rainha a dar instrução a cadetes milicianos. Até que recebeu a ordem de mobilização para a Guiné. Deveria embarcar em setembro de 1970, mas fugiu a 23 de agosto. Com outros nove oficiais, montou o plano da deserção. Um deles era natural do Gerês e conhecia quem pudesse ajudá-los a dar o salto. Naquela tarde, organizaram no parque natural um piquenique com tripas à moda do Porto, para não levantar suspeitas enquanto esperavam pelo ‘passador’. Juntos, andaram durante algumas horas até cruzar a fronteira, onde tiraram uma fotografia a fazer um manguito ao regime. Despediam-se de Portugal, sem saber quando ou se alguma vez poderiam voltar. “Era um mergulho no escuro. Significava deixar de ver familiares e amigos e romper com uma carreira. Em Portugal estávamos prestes a tornar-nos engenheiros. Lá fora, não sabíamos o que esperar. Partimos do zero. Não éramos nada. Não tínhamos nada”, conta. Fernando levava apenas 15 contos, presos numa cinta por baixo da camisa.
Do outro lado da fronteira, esperava-os uma Ford Transit, providenciada pelo passador, que os levou a Ourense, onde apanharam uma camioneta de imigrantes rumo a Paris. Mais tarde, Fernando e outros cinco acabaram por seguir viagem para a Suécia, que sabiam facilitar a concessão de asilo político e o apoio a desertores portugueses. A sua chegada ao país foi amplamente noticiada nos jornais locais. Deram uma conferência de imprensa explicando os motivos da fuga e mostrando o seu apoio à independência das colónias. O caso teve eco em toda a Europa e enfureceu o então ministro da Defesa Nacional, Sá Viana Rebelo, que os apelidou de “traidores à pátria”.
Na verdade, a deserção foi, para eles, um “gesto patriótico de recusa e denúncia pública de uma guerra injusta”, salienta Fernando Cardeira, que hoje preside ao Movimento Cívico Não Apaguem a Memória. “Estivemos do lado certo da história.”
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