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Monday, July 9, 2007

UMA EX-PCP

Entrevista a Zita Seabra: "Fui uma mulher-a -dias do PCP"



FERNANDA CÂNCIO
ORLANDO ALMEIDA (imagem)

De que é que tem mais saudades no Partido Comunista?

Saudades, saudades, não tenho. Passou o tempo e a distância que me permitiu refazer as minhas memórias. E recordar, sem angústias, aquilo que foram mais de 20 anos, muito intensos e brutais, de uma vida. Foi um tempo muito duro, que não dá para ter dor nem para ter saudades, que não renego. Mas que se pode recordar. Vivo bem com o passado, aliás senti necessidade de contar esse passado.

Diz que alguém que está numa organização como essa não pensa, vê o mundo pela cartilha. Como é viver sem essa simplicidade?

Essa simplicidade é muito perigosa. E quando se recupera a liberdade o mundo torna-se mais complexo. Não é tão fácil sobreviver. Mas a liberdade é muito boa.

Há no entanto entusiasmo, nostalgia, no seu relato dos seis anos de clandestinidade. Perpassa na sua narrativa um sopro heróico, apesar de dar conta de um grande sofrimento.

Era uma vida muito dura. Era uma "companheira da casa do partido" ou, pior ainda, uma "amiga do partido"...

Que era a mulher que toma conta da casa do homem que faz trabalho organizativo. Uma espécie de mulher-a-dias do partido.

Sim, uma mulher-a-dias, completamente. Eu, que vinha de uma família burguesa, com criadas de dentro e de fora, costureira, etc., vi-me a ter como tarefa principal tomar conta de uma casa, fazer trabalho doméstico. Nunca tinha lavado roupa num tanque, nem sabia o que era, nunca tinha estrelado um ovo. Assumiram que sendo mulher saberia fazer. E aprendi rapidamente, embora até hoje não saiba coser. Mas o pior foi a solidão, que era uma solidão brutal. Tinha imensas saudades de casa, dos meus pais... Era filha única, sabia que tinha feito o que de pior se pode fazer a uns pais, que era não me poderem ver. Mandava uma carta de vez em quando, recebia uma carta de vez em quando.

Os seus pais nunca a recriminaram?

Não, nunca. O que é fantástico. Vi-os apenas uma vez na clandestinidade. O PCP autorizou e organizou-se um encontro com os meus pais, em Sesimbra, numa casa clandestina. Encontrei-me com eles, com o meu avô e o meu tio. E custou-me imenso, não matei as saudades, vim com mais saudades. Mas uma das formas que a PIDE tinha de chegar aos clandestinos era através da família e era preciso fazer o corte. Ainda hoje me interrogo como é que não peguei num telefone e não liguei para os meus pais. Só o fiz a 26 de Abril de 1974.

Lembra-se do que pensava sobre o que ia ser o seu futuro? O que é que imaginava?

Imaginava que a liberdade um dia chegaria e imaginava um futuro radioso, de um Portugal socialista, em que todas as pessoas seriam iguais e os trabalhadores teriam todos os direitos ou mais que os direitos de qualquer patrão que, no meu ver, explorava os trabalhadores. Eu não me via com uma carreira política, não era possível sonhar com uma carreira política e estar ali.

Tinha 17 anos. Quanto tempo fez isso?

Quatro anos, e mais dois anos em Lisboa, em trabalho organizativo. Vim para Lisboa em 1972. Entrei para a clandestinidade em 1968, lembro-me de ouvir na rádio o que se passava em França em Maio de 68...

1968 foi também o ano em que as tropas russas invadiram a Checoslováquia - um acontecimento que levou a muitas dissidências de comunistas no mundo. Também se lembra de ouvir essa notícia pela rádio?

Ouvi, mas pouco. Tomei conhecimento, mas, eu digo sempre e creio que isso está muito claro no livro, eu não era dissidente antes de o ser. Era uma verdadeira bolchevique, que achava que a ideologia comunista era a ideologia certa, e que acha que para atingir determinados fins todos os meios valem. Qualquer invasão da Checoslováquia ou qualquer outro drama que um país sofresse acharia que era sempre por uma boa causa. Pensei pouco nisso e achei que era justificado.

Acreditava aliás na revolução pelas armas.

O PC não esteve a fazer outra coisa. Senão não teria havido o 25 de Novembro. O PCP começou, logo no dia 25 de Abril, a procurar o nosso Outubro. E o nosso Outubro era a via armada para o socialismo.

Estava disposta a matar, portanto.

Estava mais disposta a morrer.

É mais bonito...

É. Mas na via armada mata-se e morre-se. E há outra nota no livro que eu sublinho: o que está errado no comunismo são as ideias, não é a prática. Muitas vezes as pessoas saem dos partidos comunistas e dizem: o que estava errado era a prática, as ideias eram boas. E procuram ficar com a herança boa. Mas quando se esteve num partido comunista em qualquer parte do mundo defendeu-se a ditadura do proletariado, defendeu-se a superioridade moral dos comunistas, defendeu-se a propriedade colectiva dos meios de produção. Defendeu-se o que ainda hoje se passa em Cuba... A vítimas do comunismo foram tantas ou mais que as do nazismo. O que se passa é que essas vítimas não têm nome, não têm monumentos... Parece que passaram pela História sem lá estar.

Mas era essa a ideia. Apagá-las, não é?

Claro. E este livro é uma tentativa de não apagar. E de dizer que o que está errado são as ideias, porque levam àquela prática. Que começou em 1917, na Rússia, e continuou em muitos sítios. A esquerda europeia tem dificuldade em viver com isso.

Algumas das vítimas eram-lhe próximas. A sua amiga Sita Valles, brutalmente assassinada em Angola em 1977 a mando de Agostinho Neto, por exemplo.

Aquilo que aconteceu à Sita Valles foi o que aconteceu à dissidência em qualquer parte do mundo. Foi tão chocante e brutal... Ela estava grávida, foi violada e torturada, deixou um filho sem pai nem mãe. Mas não provocou nenhum frisson no PCP. Falei disso com o dr. Cunhal e logo a seguir ele publicou no Avante! uma nota a dizer que tinha sido "para pôr ordem na casa". Era assim...

Mas a sua militância sobreviveu a saber todo o horror da morte dela. Isso não faz de si uma cúmplice dessa morte?

Não me sinto cúmplice. Mas sobrevive-se mal a isso. Pesa muito na consciência e por isso é um ponto importante do meu livro.

Não denunciar, não se demarcar daquilo que aconteceu não é ser cúmplice?

É, mas ser comunista é ser cúmplice do que é o balanço do comunismo.

Sim, mas termina o livro dizendo: "não admito que me julguem".

A frase não é essa. Diz: "Aqueles que não lutaram pela liberdade em Portugal não me julguem."

Mas porque é que esses não podem julgá-la? Por exemplo, eu, que não tinha idade para lutar nessa altura, não posso julgá-la?

Não, não, não é desses que eu falo. Eu falo daqueles que foram cúmplices do regime... Porque o PCP tem também um lado heróico brutal. De luta pela liberdade. É o que faz a diferença do comunismo em relação ao nazismo, e o que explica que tenha atraído os intelectuais todos.

Havia uma generosidade.

Sim, havia um lado generoso, não tem um lado só horripilante. Havia pessoas presas 20 anos em Portugal pelas suas ideias. É essa mistura que é terrível.

Aliás acaba o livro certificando que os comunistas sabiam de tudo, dos crimes todos cometidos em nome do comunismo.

Acho uma grande desonestidade intelectual dizer-se que não se sabia. A questão é: achávamos necessário ou não? Arranjávamos sempre desculpas. E a desculpa era: a URSS vive isolada, temos de nos defender dos inimigos. Os crimes eram feitos em nome da superioridade moral dos comunistas e dos valores que era preciso defender.

Mas também confessa que só leu os livros da dissidência - como o da Cândida Ventura, que saiu em 1976, ou os de Soljenitsine - muito tarde, quando estava quase a sair. Não tinha curiosidade? Não quis ler para poder refutar?

Não, nunca tinha lido. Essas coisas fazem-se quando se é livre. O que lia era para confirmar aquilo em que acreditava. Quando comecei a ter dúvidas comecei a ler o resto. Foi numa altura em que estive doente, em casa, com tuberculose... Comecei a querer ver o outro lado do comunismo. Houve um impulso, o dizer: alto lá que isto se calhar não é assim, porque é que estou aqui nesta revolução armada, há mais mundo para além do mundo.|

Quando em 1988 votam na Comissão Política do Comité Central de braço no ar para decidir se a expulsam, toda a gente vota a favor da expulsão e a Zita vota contra. Queria mesmo ficar? Porquê?

Queria mesmo ficar. Eu ainda era comunista, ainda acreditava, queria mudar o partido, que deixássemos a via armada, que a votação passasse a ser secreta, que os dirigentes mais ortodoxos do PC fossem substituídos por outros mais abertos... Depois, no segundo julgamento, já não achava possível renovar o Partido Comunista.

É como se fosse essa rejeição brutal de que foi alvo que a faz afastar-se do comunismo. Em meses. Porque a trataram pessimamente. Só deixou de ser comunista porque foi expulsa?

Também por isso. Quando é connosco dói mais. Aquele julgamento foi incrível de dureza, de achincalhamento, de insulto, doeu-me muito. Aqueles camaradas que eu conhecia e me conheciam a mim... A imensa maioria não tinha a minha história. Estavam ali a julgar-me com que direito?

Percebeu que não tinha ali amigos.

Mas quando fiz uma declaração a dizer que já não era comunista, disseram-me: "Pareces a Cândida Ventura". Fiquei muito chorosa, mas houve alguém que me disse: "Isso para si devia ser uma honra." E aquilo bateu-me. Senti-me burra, ridícula. Porque eu devia era ter sido a Cândida Ventura, saído quando ela saiu, em 1976.

É o preconceito contra o dissidente, o arrependido, o traidor. E agora a Zita é a mais famosa arrependida do PC, em relação à qual há a ideia de que se passou completamente para o outro lado, que se vendeu: foi nomeada por Cavaco para um cargo em 1993, é dirigente do PSD, assumiu a luta contra causas que eram suas, como a do aborto. Como lida com a antipatia que isso causa?

Lido bem... Sinto isso com uma enorme superioridade, porque a grande agressividade foi a do mundo contra os partidos comunistas. E tenho pena que alguns de quem gosto no PC não vejam isso. Sei que simbolizo a mudança, apesar de haver tanta gente que mudou de partido e de ideias... Sei que simbolizo um pouco isso e pago esse preço. Mas no aborto, a minha posição é hoje idêntica à que tinha. Nunca o considerei um direito, mas um último recurso.

Nos agradecimentos do livro está um monsenhor, o mote é uma frase bíblica, apesar de se dizer ateia de formação. Descobriu Deus, entretanto?

Sobre a minha vida depois de 1989 não quero falar. Não gosto de falar da minha vida privada e só a abordo no livro quando é relevante para a política. Devia ser uma regra dos políticos, embora seja uma fronteira difícil. Se calhar se tivesse entrado em domínios mais privados, quer da minha vida quer da do dr. Cunhal, vendia mais...|


O PROBLEMA NESTAS "CONVERSÕES" É MESMO O DA SINCERIDADE.QUE ATÉ PODE HAVER MAS QUE SERIA MAIS CONVINCENTE SE NÃO HOUVESSE SUBIDA PARA UM POLEIRO MELHOR...
EU ACHO QUE GOLPES DE RINS TUDO BEM MAS NADA DE DESCULPAS EXAGERADAS COMO SE TEM FEITO METENDO NO MESMO SACO OS ARREPENDIDOS E OS QUE NUNCA COMETERAM ERROS...GERALMENTE SAINDO AQUELES NORMALMENTE "POR CIMA"...