Tudo o que tem de saber sobre a nova lei de nacionalidade
03.07.2017 às 21h38
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-07-03-Tudo-o-que-tem-de-saber-sobre-a-nova-lei-de-nacionalidade
PATRICIA DE MELO MOREIRA
A pátria é mesmo a língua portuguesa, diz a nova lei da nacionalidade. Todos os netos de portugueses que vivam em países com língua portuguesa têm o processo de obtenção da nacionalidade facilitado. Nova lei demorou dois anos a ser regulamentada. Até ontem
LUCIANA LEIDERFARB
A partir de hoje, 2 de julho, todos os netos veem a letra da lei n.º 8 de 2015 transformar-se em possibilidade real, com a entrada em vigor do decreto-lei 71/2017. São boas notícias para os descendentes em segundo grau de nacionais portugueses. Mas são ainda melhores para aqueles nascidos em países de língua oficial portuguesa, pois, nesse caso, um dos requisitos necessário para ser cidadão português, a chamada "efetiva ligação à comunidade", encontra-se de imediato preenchido, não sendo obrigado a fazer a prova de português.
Isto porque, no contexto do diploma, uma das suas mudanças mais significativas reside justamente na redefinição do conceito de ligação à comunidade, agora umbilicalmente ligada ao conhecimento da língua. "Esse conhecimento deve presumir-se quando o interessado seja natural e nacional de país que tenha o português como língua oficial há pelo menos 10 anos", situação em que "fica dispensado de comprovar o conhecimento da língua portuguesa". Segundo o documento, esta alteração vem corrigir um "obstáculo administrativo dificilmente compreensível, agilizando-se o procedimento."
"Este foi um aspeto que gerou muita discussão", reconhece Gonçalo Matias, professor da Universidade Católica Portuguesa. "Porém, neste momento, basta ser-se nacional de um país onde se fale português para que a ligação à comunidade esteja provada", continua o jurista. No caso dos netos de portugueses que gozem desta situação, a atribuição de nacionalidade encontra-se facilitada em comparação à dos descendentes naturais de países com outras línguas oficiais. Para estes, a ligação à comunidade terá de ser validada por meio de um teste de português - como aliás já acontece com muitos dos estrangeiros residentes em Portugal que pretendam naturalizar-se.
DISPARIDADE CRITICADA
Não é por acaso que, em meados de junho, o presidente do Conselho das Comunidades Portuguesas, Flávio Martins, disse em declarações à Lusa que a lei "cria uma diferenciação que poderia ter sido evitada" entre netos de portugueses consoante a sua naturalidade. E não é por acaso que Ana Rita Gil, investigadora do CEDIS (Centro de I&D sobre Direito e Sociedade) da Universidade Nova de Lisboa, diz agora ao Expresso que se bem "foi importante" a dispensa do teste de português aos nacionais dos países que o tenham como língua oficial, o facto de só os nascidos nesses países serem dispensados "levanta algumas dúvidas que se prendem com o princípio da não discriminação em função da origem nacional".
Por outro lado, a ligação à comunidade com base na língua vem "reforçar os laços e prever um regime mais favorável de aquisição da nacionalidade por parte dos nacionais de países da CPLP", diz Ana Rita Gil. E, deste modo, "consagra-se na lei um dos aspetos que era um dos mais tidos em conta na jurisprudência dos tribunais portugueses, quando se pretendia provar se a pessoa tinha ou não ligação efetiva com a comunidade portuguesa".
REGISTO CRIMINAL E COMBATE AO TERRORISMO
No elenco das medidas previstas na lei de 2015 e agora regulamentadas, deixa também de ser exigida a apresentação de certificado de registo criminal aos requerentes que residam fora do seu país de origem desde os 16 anos, eliminando desta forma, lê-se no diploma, "uma exigência burocrática carecida de razoabilidade". Segundo Ana Rita Gil, esta foi "uma das maiores conquistas para as associações de imigrantes", uma vez que permite "obviar dificuldades burocráticas" ao mesmo tempo que se outorga "uma espécie de amnistia por crimes que os estrangeiros possam ter cometido durante a sua juventude, em contextos de carência socioeconómica e sistemas de justiça potencialmente 'injustos'."
Outro dos aspetos presentes nesta legislação é o facto de abordar o tema do terrorismo. "Tentou-se criar maior controlo na concessão de nacionalidade a suspeitos de terrorismo", explica Gonçalo Matias. Neste sentido, segundo a lei, só terão acesso à mesma aqueles que "não constituam perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo." Para Ana Rita Gil, esta inclusão vem ao encontro do que tem sido feito noutros países europeus desde o ataque ao jornal satírico "Charlie Hebdo", em França, e responde a um problema com que todos se deparam: se um eventual terrorista for nacional, "à luz do direito internacional não pode ser expulso". "As várias cláusulas que agora estão previstas na lei portuguesa visam dar cumprimento aos compromissos de 2015, mas apenas pela prevenção, já que em Portugal existe uma regra há muito sedimentada de que apenas se pode perder a nacionalidade por força da vontade do titular", destaca a investigadora. Em França, por exemplo, o Código Civil prevê que quem adquiriu a nacionalidade francesa pode perdê-la "se cometer um crime grave ou ato de terrorismo".
JUS SANGUINIS VS. JUS SOLI
Neste momento, existem no Parlamento vários projetos de alteração à lei da nacionalidade. Um deles pertence ao Bloco de Esquerda que, num sentido mais radical do que consta na atual lei, reforça não o princípio de jus sanguinis mas o de jus soli. "O nosso projeto pretende que quem nasce em Portugal deve ter nacionalidade portuguesa e isso deve ser automático, não dependendo, como agora acontece, da expressão de vontade posterior das pessoas em causa", diz o deputado José Manuel Beleza. Porém, a respeito da lei que ontem entrou em vigor, adianta que "há passos que foram dados". As novas regras para a realização ou não do teste de língua portuguesa "são mais sensatas do que aquelas que existiam anteriormente". E foram "diminuídos e facilitados muitos dos requisitos para a aquisição da nacionalidade".
"O jus soli puro nunca correspondeu a uma tradição nossa", afirma Ana Rita Gil, para quem o importante é encontrar mecanismos para "facilitar a aquisição da nacionalidade a filhos de imigrantes, por exemplo, através de formas mais favoráveis de naturalização das crianças".