A falsa seita que abusava de crianças em Palmela
08 Julho 2016296
Sónia Simões
Um falso psicólogo criou um falso local de culto para uma falsa seita religiosa. Pedro, de 34 anos, era tratado por "mestre". Na realidade, abusava de crianças e vendia os seus serviços a pedófilos.
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Da estrada vê-se apenas a casa principal da herdade, em Brejos do Assa, Palmela. Nada que dê indicação do que se passava lá dentro. Um falso local de culto, de uma falsa seita religiosa, inventada por um falso psicólogo. E assim Pedro, de 34 anos, abusou de várias crianças e criou um negócio de pedofilia.
Foi preciso percorrer o caminho de terra para a Polícia Judiciária encontrar inscrito numa árvore o nome “Javeh” e um crucifixo. À volta, umas cadeiras, onde seriam feitas as supostas cerimónias religiosas. E depois, entre paredes, o choque: havia colchões espalhados por todo o lado e documentos com as regras da organização. Os miúdos passavam por uma cerimónia semelhante ao batismo, mas o grande objetivo “não era chegar ao céu”. Era ser purificado.
Havia vários graus de purificação, todos eles através de atos sexuais com os menores. “Sexo anal era o topo. Seguiam-se diferentes tipos de abusos: carícias, masturbação, sexo com penetração”, diz uma fonte da PJ. Os purificadores? Os predadores sexuais.
“Ele percebeu que havia homens com preferências específicas por crianças e começou a vender-lhe os serviços”, diz fonte da investigação.
Pedro sabia que podia fazer dinheiro. Bissexual assumido, ele próprio abusava dos menores. Criando cenários para lhes tirar fotografias, acariciando-os. Foram essas imagens, assim como as descrições físicas de cada um dos meninos que usou numa série de sites destinados a encontros gay — onde passava horas e acabaria por encontrar vários homens que andavam, afinal, à procura de crianças.”Ele percebeu que havia homens com preferências específicas por crianças e começou a vender-lhe os serviços”, diz fonte da investigação.
Para camuflar o esquema, Pedro, utilizando os seus conhecimentos enquanto Testemunha de Jeová, criou uma seita a que chamou “Verdade Celestial”. Segundo a PJ, elaborou um conjunto de regras, com categorias hierárquicas, e alegava ser ele o “mestre” — que por sua vez respondia a um mestre espanhol, de nome Pablo. No Facebook, criava vários perfis para sustentar a mentira.
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O acesso à casa onde aconteciam os abusos sexuais
Pedro dava consultas de psicologia e explicações às crianças e aproveitava-se do facto de elas por vezes passarem a noite na quinta para trazer os clientes pedófilos até lá. Enquanto as crianças dormiam, eram sujeitas a abusos sexuais vários. Sempre sozinhas, para que os crimes não fossem testemunhados por outras crianças. E sempre sob o pretexto da purificação. “Chegou a cobrar 30, 60 euros pelos serviços. Havia homens que acabavam a dormir lá, outros iam embora” depois dos abusos, conta a PJ.
Entre os múltiplos contactos que fez pela internet, e cujas conversas foram recuperadas pela Polícia Judiciária, há diálogos “inacreditáveis”. “Nalguns ele descreve os próprios filhos. Noutros, há homens a sugerirem que tenham filhos para se servirem deles”, conta a PJ.
Na casa que a PJ visitou, em junho de 2015, numa operação montada em apenas duas semanas, viviam Pedro, a mulher e os dois filhos, um amigo que servia de “motorista” da organização e o filho deste, também menor. Era o motorista quem ia buscar e levar os miúdos a casa dos pais.
A certa altura, nos contactos pela internet, Pedro conheceu também um casal de raparigas com cerca de 20 anos que tinham fugido da casa dos pais, em Aveiro, porque eles não aceitaram a sua homossexualidade. “Foram para lá viver, tomavam conta das crianças, mas tinham práticas sexuais à frente delas. Uma vez terão mostrado como se usa um vibrador”, diz a PJ. “Lembro-me de a mulher do Pedro andar sempre acompanhada de duas miúdas muito loiras. Dizia que eram amigas dela. Às vezes eram elas que iam buscar as crianças à escola”, diz uma testemunha.
Certo dia, chegou um oitavo habitante à casa: um rapaz que acabara o curso superior e que também tinha assumido a sua homossexualidade. Os pais não o aceitaram e sentia-se “perdido”. Todos eles contribuíam de alguma forma para a falsa seita, acreditando que Pedro tinha “superpoderes”.
“Ninguém queria acreditar na história”
Foi esse rapaz, recém-licenciado, que acabou por denunciar tudo à PJ. Um dia, chateado com Pedro, disse-lhe que ia abandonar a organização. O mestre respondeu-lhe que, se o fizesse, corria sérios riscos de vida. Alegou que havia elementos da PSP e da GNR na organização e que esta tinha dimensões internacionais. Chegou mesmo a castigá-lo, obrigando-o a despir-se e vergastando-o com ramos de árvores.
O rapaz fugiu e, cheio de medo, foi bater à porta da Polícia Judiciária de Setúbal. “Ninguém queria acreditar na história que estava a contar”, diz a fonte. “Era tão inacreditável que tivemos dificuldade em considerar o caso credível”, sublinha. Mas, como a história envolvia crianças, era preciso atuar. “É um case study. Não é normal em Portugal, parece inacreditável. Passa-se ao lado da nossa casa”, diz a PJ.
É um case study. Não é normal em Portugal, parece inacreditável. Passa-se ao lado da nossa casa”, diz a PJ.
Em duas semanas, a PJ conseguiu reunir vários peritos e obter mandados de busca e detenção para junho de 2015. “Nesse dia havia polícia por todo o lado”, recorda a vizinha. Foram recolhidos computadores, vestígios de sémen, papéis com regras e todas as provas que pudessem confirmar a história da testemunha que fugiu da seita. Seguiram-se horas de interrogatórios, de identificações das crianças, de cruzamento de provas — que incluíam chats na internet, vídeos, fotografias feitas na casa.
A PJ conseguiu identificar oito vítimas, entre elas os filhos de Pedro e do seu motorista. “O filho do ‘psicólogo’ era uma criança muito calada. Fazia tudo o que lhe diziam e passava o dia sem ir à casa de banho. Ele recusava ir a passeios da escola por causa disso”, conta a funcionária da escola.
Pedro alegou também ser vítima
Assim que a PJ lhe entrou em casa, Pedro descaiu-se. Disse que já estava à espera de ser detido um dia. Mas depois, já nas instalações da PJ, viria a tornar-se um suspeito difícil de interrogar. Com contradições e omissões. Até que, com persistência da polícia, acabou por confessar. Alegou ter sido abusado em criança, à frente dos pais, pensando assim que a sua culpa seria atenuada.
No seu passado, apurou a PJ, não havia cadastro. Mas a mulher dele admitiu ter-lhe satisfeito alguns fetiches sexuais, como fazer sexo com outros homens enquanto ele filmava. Por outro lado, ele próprio já tinha deixado um pedófilo ir a sua casa e acariciar o seu filho. Um ato que também filmou e com o qual chegou a lucrar. “Foram encontradas no computador inúmeras imagens dele próprio e de pornografia infantil. Fotografava os miúdos na piscina insuflável, de cuecas, afastava as cuecas das crianças e mostrava isso tudo a pedófilos”, diz a PJ.
Com ele foram detidos quatro outros homens, os “purificadores” da seita: o recém-licenciado; um homem com o curso de Direito que se fazia passar por advogado; o motorista; e um amigo, que namorava com a filha dos donos da quinta. Os primeiros três ficaram em prisão preventiva. Há ainda um quinto arguido, que, quando a PJ agiu, já se encontrava preso preventivamente à ordem de outro processo — também por abuso sexual de menores. A mulher de Pedro e as duas raparigas de Aveiro foram detidas, mas encontram-se em liberdade. “A mulher do mestre tem uma atitude demasiado passiva, tem algum instinto protetor em relação ao mais velho, mas assistia impávida e serena. Compactuou”, diz a PJ.
Como Pedro chegou à terra e ficou conhecido por “psicólogo”
A dona de um café em Brejos do Assa, Palmela, que não quer ser identificada, lembra-se bem da primeira vez que viu Pedro. Chegou ao café acompanhado da mulher e dos dois filhos pequenos. Foi a mulher dele quem os apresentou, através de uns cartões de visita que o identificavam como “psicólogo”. E foi assim que Pedro ficou conhecido pela vizinhança. Até ao dia em que a PJ irrompeu na casa onde viviam e desmantelou a falsa seita religiosa. Um ano depois, com cinco homens e três mulheres arguidos no processo, o caso continua a gerar perplexidade.
A mulher do mestre tem uma atitude demasiado passiva, tem algum instinto protetor em relação ao mais velho, mas assistia impávida e serena. Compactuou”, diz a PJ.
Pedro e a mulher terão chegado à freguesia em 2013. Quem os conheceu diz que pareciam “pessoas pobres”. Pensavam que tinham vindo do Norte, com os dois filhos então de dois e sete anos. Mas, segundo disse fonte da PJ ao Observador, Pedro veio de perto. Antes vivera em casa de uma irmã no bairro de Monte Belo, em Setúbal, onde trabalhou como rececionista. E a mulher era do Pinhal Novo.
O casal não teve dificuldades em integrar-se. Pedro tinha experiência como treinador de futebol e conseguiu um lugar no Clube Desportivo de Algeruz, a treinar os Ferinhas. Ia mantendo contacto com os rapazes menores. Aos pais, entregava cartões e apresentava a sua especialidade: psicologia. “Cheguei a levar lá o meu filho, ele fez um relatório médico e eu entreguei-o à psicóloga da escola. Nunca ninguém estranhou”, disse uma residente ao Observador.
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Pedro chegou a ser treinador do clube de futebol local
Os relatórios feitos pelos psicólogos da PJ mostram que é um “burlão manipulador, mentiroso, convincente naquilo que diz”. Pedro conseguia argumentar e convencer as pessoas sem sequer as confrontar. Sabia levá-las. E foi assim que se integrou na freguesia e depressa conseguiu um conjunto de clientes. Todos menores.
Manuel ainda se lembra de quando ele chegou. Um vizinho perguntara à sua mulher, entretanto falecida, se ela não teria um espaço para o “senhor psicólogo alugar para dar consultas”. Ela tinha um anexo: uma sala, uma pequena cozinha e uma casa de banho. Pedro aceitou e pagou-lhe 150 euros. Ainda chegou a pintar as paredes, mas acabou por nunca habitar ali, em Algeruz. A mulher de Manuel acabou por devolver-lhe o dinheiro. “Via-se que eram pessoas pobres”, argumenta.
Foi num anexo numa quinta em Brejos do Assa que Pedro e a família acabaram por ficar. Com eles um amigo, da mesma idade, que também tinha um filho de oito anos. Com os contactos feitos através dos treinos de futebol com os pais das crianças, Pedro começou a dar consultas de Psicologia. Diz a PJ que por apenas cinco euros. Paralelamente, dava explicações. “Lembro-me de ele vir cá distribuir panfletos para divulgar as explicações que dava. Mal soube que tinha sido preso deitei tudo fora”, conta ao Observador uma funcionária da escola primária, frequentada pelo filho de Pedro.
“Lembro-me de ele vir cá distribuir panfletos para divulgar as explicações que dava. Mal soube que tinha sido preso deitei tudo fora”, conta ao Observador uma funcionária da escola primária, frequentada pelo filho de Pedro.
Montou o seu negócio e acabou por deixar os treinos de futebol. Da estrada, é impossível ver todo o espaço ocupado por Pedro, localizado no centro de uma enorme quinta com árvores de fruto e rodeada de videiras. Cá fora, os moradores pensavam tratar-se um verdadeiro ATL. Havia consultas de psicologia, explicações e atividades. Os miúdos gostavam de ir para lá. E os pais até chegaram a ser convidados para festas e sessões de karaoke. Sem suspeitas. “Ao fim de semana ouvia-se sempre música. Às vezes até muito tarde”, conta ao Observador uma vizinha, que chegou a pensar deixar lá o neto no verão — a PJ chegou antes para prender Pedro.
A acusação aos cinco homens e três mulheres por parte do Ministério Público ficou concluída em junho deste ano, doze meses após a detenção. O procurador pediu que os arguidos perdessem as responsabilidades parentais. Os filhos de Pedro encontram-se à guarda da mulher dele, que está em liberdade.
A Comissão de Proteção de Menores e Jovens em Risco está a avaliar o caso. Além dos filhos dos arguidos, vai avaliar se as crianças que foram vítimas dos abusos se encontram seguras com quem vivem. “Como é que os pais nunca suspeitaram, olhando para as condições daquela casa?”, interroga a PJ. E deixa o aviso: “Que este caso sirva de prevenção. Estas coisas podem acontecer mesmo ao lado e ninguém dá por elas”.
Texto de Sónia Simões, fotografia de pamaral.