Com lágrimas nos olhos
16 de Maio de 2007 às 5:37 pm por André Azevedo Alves
Eduardo Lourenço sobre Torga e Salazar:
Lembro-me de o Torga me ter contado uma história que se passou com um ministro de Salazar, o Leite Pinto, que ia ao Brasil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil, de modo que podia servir como uma espécie de cartão-de-visita, mesmo sendo hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir, foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar um poema do Torga. O mais interessante é que Salazar continuou o poema, e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.
Essa relativa ambiguidade também se estendia à sua geração?
Os mais jovens da minha geração tinham cortado com o regime, mas não tão radicalmente como se diz. Muitos tinham lá amigos bem colocados e gozavam de uma certa benevolência. Não eram de todo colaboradores, toda a gente sabia o que pensavam no plano político, ideológico, e até cultural. Mas as coisas eram complexas. Não tiveram comparação possível com o que foi o nazismo, mesmo se havia facetas do regime que eram comuns a todos os totalitarismos, pelo menos de tipo europeu.
Num primeiro tempo, o regime é aceite, à espera que o país funcione. Há uma certa atenção positiva. Depois temos a guerra civil espanhola, que foi determinante para a mudança do regime, mesmo se os germes já vinham de trás. A seguir veio a Grande Guerra, que teve um efeito paradoxal, porque forneceu ao regime um certo espaço de tranquilidade. Andávamos todos preocupados em saber se íamos ou não ser invadidos. Depois, terminada a guerra, pensávamos que íamos colher os benefícios da vitória das democracias. E é verdade que houve ali um momento de abertura, que durou uns dois anos. Mas depois as coisas cerraram-se outra vez, porque, com a guerra fria a instalar-se, ficamos no lado da barricada desta Europa que vai mobilizar-se numa cruzada contra o aliado da guerra, que era a União Soviética. A partir daí, paradoxalmente, o regime vai perdendo cada vez mais simpatias, porque também já era outra geração, que queria outras coisas, e que se sentia frustrada. Foi nesta época que eu fui lá para fora.
E vem, finalmente, a revolução de Abril. Com a urgência que ela exigia, não se perdeu grande tempo a repensar, a revisitar pedagogicamente o antigo regime, a mostrar o que era ou deixava de ser. Foi remetido para uma espécie de condenação abstracta, e o velho ditador ficou lá no seu túmulo, no lugar do mau absoluto. Era inevitável que algum dia o cadáver voltasse à tona, como nos maus (e bons) filmes policiais. Talvez seja tempo de reajustarmos as nossas diversas contas com o antigo regime, e, sobretudo, de o compreendermos.
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