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Sunday, February 13, 2011

O OBAMA A AJUDAR A EUROPA A ENTERRAR-SE

dias contados
O que querem os egípcios
por ALBERTO GONÇALVES


Desde o início da revolta no Cairo, somos diariamente abalroados por correspondentes televisivos a informar-nos de que o povo egípcio quer liberdade, democracia e beatitude celestial. Tamanha pureza comove, e é notável como uma simples visita à multidão que berra na Praça Tahir, ou lá o que é, permite aos argutos jornalistas detectar imediatamente os anseios de uma população de 81 milhões.

Se calhar, não permite. Se calhar, os jornalistas confundem o seu ofício com a repetição de clichés, na convicção um bocadinho infantil de que qualquer protesto público contra uma ditadura acarinha valores opostos aos ditatoriais. Correndo o risco de passar por retrógrado, ainda julgo que a melhor maneira de averiguar os sentimentos de um povo é inquiri-lo com rigor estatístico e não pedir a meia dúzia de voluntários que desabafem perante as câmaras.

Nem de propósito, em Abril e Maio de 2010 o Pew Research Center sondou os egípcios sobre o que de facto querem. Espantosamente, os resultados não são bem os obtidos pelo jornalismo que, dada a abundância de espaço, enche o crânio com "causas" e crendices, passe a redundância.

Em primeiro lugar, 59% dos egípcios exigem democracia (22% são-lhe hostis e 16% mostram-se indiferentes), a segunda percentagem mais baixa dos sete países muçulmanos estudados na referida sondagem. Ao mesmo tempo, 85% defendem um papel determinante do islão na política (apenas 48% achavam que o papel era assegurado na regência de Mubarak). 80% acham os atentados suicidas nunca ou raramente justificáveis (20% acham-nos frequen- temente justificáveis). No que toca aos costumes e à justiça, 54% pedem a segregação de homens e mulheres nos locais de trabalho, 82% pedem o apedrejamento das adúlteras, 84% pedem a condenação à morte dos apóstatas do islão e 77% pedem a amputação das mãos dos larápios (Mubarak não concedia tais prazeres).

Visto assim, o tipo de regime livre e democrático a que os egípcios aspiram não difere muito desse bastião da liberdade e da democracia chamado Irão, cujas luminárias imitaram o Hamas, a Irmandade Muçulmana e organizações fascistas afins e já surgiram a apoiar a luta dos insurgentes contra os "opressores": os EUA, Israel e o Ocidente em geral. O curioso é que a relativa proximidade ao Ocidente continha a opressão local dentro de limites brandos para os padrões da região. Afinal, o que a maioria ruidosa ou silenciosa de egípcios quer é a possibilidade de viver sob a barbárie da sharia. Salvo excepções inconsequentes, o combate à tirania de Mubarak faz-se em nome de uma tirania imensamente pior.

Os egípcios estão no seu direito? Sem dúvida. O aborrecido é semelhante direito colidir regularmente com o sossego alheio. Após a queda de Mubarak, as odes dos jornalistas à alegria do povo e as invectivas aos "cínicos" que não a partilham resultam de óptimas intenções, mas de péssima memória. A História recente ensina que a felicidade de certos transtornados religiosos tem um preço: a nossa.

Nunca percebi porque é que se remetiam todas as desgraças pátrias, e não só pátrias, a uma entidade tão nebulosa, abstracta e, sobretudo em Portugal, inexistente quanto o "neoliberalismo". As recentes declarações da Dra. Ana Benavente elucidaram-me: porque não se sabe o que o "neoliberalismo" é.

Para os 99,97% de portugueses que não se recordam, a Dra. Benavente foi secretária de Estado da Educação no tempo de António Guterres. Esta semana, ressuscitou através de uma entrevista à popular Revista Lusófona de Educação, na qual soltou uns desabafos do género a que por cá se chama polémico. Em síntese, a Dra. Benavente não gosta do Governo do Eng. Sócrates. Razões? O Governo é autoritário, autocrático, centralista, leninista, pouco socialista e, claro, "neoliberal".

Isto de polémico não tem nada. A polémica exige discórdia face a uma tese razoavelmente aceite. A Dra. Benavente limita-se a expor a confusão que lhe vai na alma, ainda por cima uma confusão assaz frequente entre o que é mau e o que é liberal. A benefício da senhora, não me importo de lhe explicitar a diferença.

Uma autocracia autoritária e centralista, perdoem as redundâncias, não pode ser "neoliberal". O "neoliberalismo" ou, para usar o termo correcto, o liberalismo é avesso aos apetites do Estado, logo ao centralismo, ao autoritarismo e à autocracia, modelos que impõem a omnipresença do Estado e que, com maior ou menor gentileza, são vitais ao socialismo. Socialismo não é liberalismo. Lenine, salvo melhor opinião, não era liberal. O liberalismo, que a Dra. Benavente acha mau, é bom segundo os critérios da Dra. Benavente. O socialismo, que a Dra. Benavente acha bom, é mau segundo os critérios da Dra. Benavente. A Dra. Benavente quer socialismo e não quer um Estado vasto e impune, que distribua "lugares e privilégios". Sucede que o socialismo é mesmo isso. E o liberalismo é, grosso modo, o oposto disso.

Ou a Dra. Benavente pára de culpar o liberalismo pelas desgraças socialistas, ou passa a julgar as desgraças óptimas. Aqui não há terceira via, excepto a de continuar assim e assumir uma carreira de comediante, aliás comum a inúmeros comentadores mais e, se possível, menos conhecidos.

Depois de, em Paris, o Dr. Passos Coelho ter proferido umas trivialidades sobre a crise interna, o ministro Silva Pereira acusou-o de prejudicar a imagem de Portugal. Como de costume, o ministro Silva Pereira está enganado. A maior ameaça à imagem do País não vem da oposição, de economistas dissidentes, de comentadores heterodoxos ou sequer das estatísticas que confirmam a nossa putativa falência. A maior ameaça vem, em primeiro lugar, do Governo que o ministro Silva Pereira integra e, em segundo lugar, de um anúncio televisivo a uma conhecida cadeia de hipermercados.

O anúncio, aparentemente tão inócuo quanto o Eng. Sócrates em certas entrevistas, combina a publicidade a umas bolachas do tipo "Maria" com a publicidade a um chá. Só isto, chá e bolachas, apresentados com pompa capaz de enternecer os distraídos e assustar os atentos. Os atentos não imaginam maior admissão de que estamos em crise, e de que a crise é grave, do que o empenho de uma grande empresa em seduzir milhões de famílias com a hipótese de adquirirem semelhantes iguarias por um euro e pouco.

Pelos danos que pode causar na credibilidade pátria, e consequente reflexo nas taxas de juro, um anúncio assim "bota-abaixista" (sic) não deve existir. Dado que existe, deve ser cancelado por ordem conjunta da Alta Autoridade para a Comunicação Social e do Ministério das Finanças. Além disso, urge multar a empresa em questão e forçá-la a substituir o chá e as bolachas por trufas e caviar Beluga, artigos de luxo que mostrem ao mundo a prosperidade a que o socialismo nos ergueu.

E se, o que é presumível, o hipermercado não vender trufas nem caviar, não faz mal: nós também não somos prósperos. Em matéria de imagem, a realidade nunca foi para aqui chamada. Mesmo que fosse, não nos ligaria nenhuma.

O Bloco de Esquerda (e o PCP) interessa ao PS na medida em que relativiza a incompetência socialista e permite ao Eng. Sócrates avisar, com propriedade, de perigos maiores para o País do que ele próprio. O PS interessa ao BE (e ao PCP) na medida em que, por comparação, faz brilhar o radicalismo da extrema-esquerda e permite ao Dr. Louçã mostrar ao seu eleitorado quem é verdadeiramente destrambelhado (o eleitorado do Dr. Louçã gosta de destrambelhamento).

A moção de censura apresentada pelo BE insere-se nesse arranjinho particular e mal seria notícia se não afectasse um partido exterior ao arranjo. Em público, diversas vozes sonantes do PSD já apareceram a proclamar que o Dr. Passos Coelho nem sequer pode sonhar em aprovar a referida moção. Sucede que, em privado, outras (ou as mesmas) vozes sonantes começam a cansar-se dos sucessivos recuos estratégicos do líder perante o poder e ameaçam sublevar-se.

É provável que o Dr. Passos Coelho actue em conformidade com a etiqueta ou com as suas inclinações inatas e evite derrubar um Governo que há muito ultrapassou o prazo da decência. Mas depois não se deve queixar de que o PSD actue em conformidade com as suas ambições e o derrube a ele, trocando--o por alguém que aspire chegar a primeiro-ministro ainda na corrente década. Fala-se em Rui Rio, e, por mais atributos que lhe faltem, o Dr. Passos Coelho é todo ouvidos.