Na visita recente a Moçambique, o primeiro-ministro, António Costa, levou ao extremo a génese desumana da III República Portuguesa. Está em causa o pedido de desculpas relacionado com o Massacre de Wiriamu, ocorrido a 16 de dezembro de 1972, que terá vitimado trezentas a quatrocentas pessoas num conjunto de aldeamentos da província de Tete. A violência indesculpável foi perpetrada por alguns militares portugueses no contexto da guerra colonial (designação portuguesa) ou da luta de libertação nacional (designação moçambicana) (1964-1974).
Todavia, isolar factos do respetivo contexto é negar a complexidade da condição humana, da vida social ou da história, tanto pior quando o gesto assume uma carga valorativa seletiva de condenação, com o intuito mesquinho de retirar dividendos políticos. António Costa demonstrou o lado pior da natureza humana. Entre a data do facto que o primeiro-ministro selecionou (1972) e a data do pedido de desculpas (2022), há um intervalo de quarenta anos povoado de factos silenciados inseridos no mesmo contexto histórico, e cuja carga moral, cívica, social ou histórica é em tudo equiparável.
Ao primeiro-ministro de Portugal (não me atrevo a escrever «português») jamais pode ser tolerável passar uma esponja sobre o processo de transição para a independência de Moçambique, iniciado em 1974, posto que foi marcado por uma violência assassina que atingiu vítimas portuguesas inocentes, ou moçambicanas tornadas portuguesas, entre duas a três mil pessoas, números imprecisos porque o atual regime português nunca quis contabilizar e homenagear esses cadáveres. Eles e milhares de sobreviventes foram vítimas de um contexto de violência étnica e racial em que uma esmagadora maioria (negra) violentou uma ínfima minoria (branca, incluindo segmentos mestiços) com laivos genocidas de expulsão territorial. É impossível libertar o caixote do lixo da memória histórica socialista portuguesa dessa herança (veja sff o anexo no final).
Para evitar ambiguidades, o regime da Frelimo de Samora Machel e sucessores, justamente o que se alimenta do seu direito à vitimização por causa do Massacre de Wiriamu (1972), impôs também aos moçambicanos, a partir de 1974-1975, práticas de violência totalitária, outras tantas peças do caixote do lixo da memória histórica socialista. Se o primeiro-ministro, António Costa, ignora tais factos deve simplesmente apagar da sua memória tudo o que aprendeu sobre o nazismo. Escrevo-o como moçambicano que nunca deixarei de ser. É justamente por isso que partilho, também com orgulho, a identidade portuguesa que tenho dificuldades em reconhecer na atitude do atual primeiro-ministro, António Costa.
Apenas numa das suas campanhas de «limpeza» da sociedade moçambicana dos «improdutivos», designada «Operação Produção», de 1983, o regime da Frelimo de Samora Machel enviou para a morte na província do Niassa, no extremo norte oposto a Maputo, cerca de quinze mil moçambicanos. Essa violência ocorreu no contexto de uma das guerras civis mais violentas de sempre nascida da pretensão do socialismo moçambicano, inspirado no estalinismo e no maoísmo, de coletivizar o mundo rural moçambicano (as «aldeias comunais»). A violência da ambição gerou, nos espaços rurais moçambicanos, uma guerra civil que duraria dezasseis anos (1976-1992, quando a guerra colonial tinha durado «apenas» 10 anos), uma guerra que só destruiu e despovoou distritos rurais inteiros (quando a guerra colonial tinha sido muitíssimo mais circunscrita, limitada a partes de apenas duas das dez províncias de Moçambique, Cabo Delgado e Tete, e correspondeu ao período de maior estabilidade e prosperidade de sempre do território, e basta ver o que depois aconteceu com a criminalidade), bem como a guerra civil moçambicana foi marcada por uma verdadeira chacina e violência selvática (um a três milhões de vítimas mortais quando, comparativamente, a guerra colonial tinha morto cerca de três mil militares portugueses e mesmo que o número de civis moçambicanos tenha sido o triplo ou pouco mais, em geral estão em causa cerca dez mil vítimas, incluindo as provocadas pela Frelimo).
O que vai acontecendo com a moral social de países como Moçambique é como se na Europa ignorássemos hoje o nazismo (1933-1945) e a segunda guerra mundial (1939-1945) para vivermos apenas do exorcismo da primeira guerra mundial (1914-1918). A primeira guerra mundial teve «apenas» quatro anos, a segunda ampliou para seis; a primeira foi relativamente circunscrita no espaço, a segunda atingiu uma dimensão pluricontinental sem precedentes; a primeira provocou «apenas» oito a dez milhões de vítimas mortais, a segunda cinquenta a setenta milhões. Além disso, a primeira guerra mundial torna subjetivo apurar responsabilidades, enquanto a segunda é da responsabilidade objetiva de um regime político, o nazismo.
Quem comparar o cenário europeu com o moçambicano, e fizer inferências para a África pós-colonial, perceberá o desastre provocado entre os africanos pelo culto da vitimização, daí a quase impossível sanidade mental coletiva das sociedades africanas no período pós-colonial. Não há mistério algum.
António Costa representa o ideal-tipo socialista duplamente desumano. Desumano contra o povo que o elegeu, os portugueses cuja história atropela, e desumano contra os moçambicanos, os seus anfitriões, cuja dignidade moral renega. Pior é impossível.
Não me canso de reivindicar que o pensamento de Freud seja remetido para o âmago do pensamento e da prática políticas, o melhor antídoto contra a insanidade mental coletiva legada pelo pensamento de Karl Marx, em rigor pelo que dele fez a Esquerda.
Nem sequer é discutível que a condição humana possui necessariamente instintos primários inconscientes que instigam a violência, a prática do mal (o id freudiano, compensado pelo superego, o «polícia bom», e o ego, o ponto de equilíbrio). O mal está sempre latente no sujeito individual ou coletivo, e esse mal tem de ser de ser regulado, sublimado, exorcizado. Também aqui o primeiro-ministro, António Costa, é arauto de uma grosseria tamanha: só os portugueses praticam o mal (demónios), os moçambicanos estão imunes (santos). De uma assentada, a uns e outros é negada a condição humana.
Pior. Em indivíduos ou coletivos aos quais se incute a convicção de que são eternamente vítimas dificilmente chegam a sujeitos morais. A justiça e a prosperidade são os prémios dos sujeitos morais. O detalhe é o de isso apenas ser possível quando o próprio sujeito revela remorsos, arrependimento e sentimentos de culpa genuínos face à sua própria violência, à sua quebra do autodever de regulá-la. A relação com a história (inquisição, absolutismo, ditadura, passado colonial, entre outros) demonstra que os portugueses, enquanto identidade coletiva, são inequívocos sujeitos morais. António Costa faz de muro para que os moçambicanos nunca o sejam, o muro de Berlim mental dos esquerdistas.
ANEXO
Deixo excertos do livro de Inácio de Passos (falecido no anonimato em 2012), «Moçambique: a escalada do terror» (Queluz, Literal, 1977), obra censurada pela casta política do regime, meios universitários, mundo da cultura e das artes, universo intelectual esquerdista. Trata-se de uma investigação jornalística elaborada ‘in situ’ nos dias do colapso do Império Colonial Português. Começa na cidade da Beira, em Moçambique, na noite da assinatura do Acordo de Lusaca, a 7 de setembro de 1974, marco do holocausto iniciado num território ainda sob tutela portuguesa:
«A redação [do “Notícias da Beira”] estava superlotada. (…) O Heleodoro Baptista, um mestiço da Zambézia, espalhador de propagandas comunistas de duvidosa sinceridade; o Jorge Figueiredo Jorge, português maoísta; o Armindo de Sousa, negro zambeziano; o José Rui Cunha, repórter sem política; o Castro Lobo, comunista e militante da Frelimo, mais tarde um dos chefões da Polícia de Investigação Criminal (P.I.C.) em Quelimane, e autor da maioria das perseguições e assassinatos de que foram vítimas bons portugueses. (…) É preciso lembrar que este grupo de jornalistas (…) saneou a administração do jornal, passando a empresa a ser administrada por uma comissão de trabalhadores. (…)
A maioria dessa nova escola do jornalismo moçambicano era composta por rapazes portugueses, vindos em criança para Moçambique (…). Os mais directos colaboradores da imprensa moçambicana do tempo de Marcello Caetano apareceram como agressivos defensores da Frelimo, sujeitando-se às mais escabrosas traições ao povo português para agradarem ao Partido. (…)
Os manifestantes abandonaram as viaturas e concentraram-se em frente da redacção. (…) Jorge Figueiredo Jorge atrevera-se, no seu entusiástico maoísmo despoletado, a amesquinhar e ridicularizar a cultura portuguesa, atitude que Samora Machel tomaria muitas vezes depois. Era necessário agredir de qualquer modo, e creio que pouco do que existe em Portugal se esquivou às seringadelas de veneno dos seus escritos. E o que por ele foi poupado não teve a mesma sorte na prosa do Heleodoro Baptista e do Castro Lobo.
A atitude destes jornalistas, seguida mais medrosamente por outros, espantava os portugueses [em Moçambique]. Eles tinham conhecimento das palavras de Eduardo Mondlane [primeiro presidente da Frelimo, assassinado em 1969] (…): “O povo português deve compreender que o povo moçambicano é um povo fraterno. Nós, moçambicanos, nada temos contra o povo português nem contra a cultura portuguesa. Ao contrário.” Samora Machel, seu seguidor na presidência da Frelimo, discursando no Norte no seu primeiro contacto com as populações do Niassa, diria que a cultura portuguesa “começa às dez da noite e termina de madrugada. É uma cultura de cabarés, de álcool e de prostituição”. (…)
Portugal e a Frelimo não permitiram a presença de observadores moçambicanos, não afetos ao Partido mas simpatizantes da libertação nacional (…). Mas sabia-se, também, que a Frelimo, com uma dezena de anos de luta, período de tempo em que apenas contactou as zonas do interior [1964-1974], que pouco ou nada representavam do contexto económico, político e humano de Moçambique, vivendo com sede no estrangeiro e visitando clandestinamente a parte mais desértica e menos civilizada da colónia, desconhecia, do mesmo modo, a realidade moçambicana. Pode-se, assim, afirmar que o Acordo de Lusaka foi negociado entre duas entidades estranhas a Moçambique: o Governo de Portugal com sede em Lisboa, e a Frelimo com sede em Dar-es-Salam [Tanzânia]. (…)
Afirmava-se, à boca cheia que ele [Santos Martins] era, de velha data, informador da P.I.D.E. Eu, porém, via-o apenas como homem pouco culto que queria tirar partido de meios oportunistas para ocupar posições para que não lhe chegava o mérito. (…) Meses após, depois de uma curta passagem por um grupo fantoche de Democratas – criado após a revolução dos cravos – para onde entrou pelas mãos de um comerciante com pretensões a literato e ex-líder do G.U.M.O. [Grupo Unido de Moçambique], de nome Isaías Marrão, traidor português responsável por inúmeras prisões de colonos na província de Tete, o jornalista Santos Martins entrava nas estruturas da Frelimo, e conseguia deitar mão a algumas alavancas do comando político de Tete, esquecendo a sua recente adesão à política colonialista. Construiu duas residências. Dirigiu um emissor. Representou o mais importante jornal de Moçambique. Foi proprietário de uma discoteca. Foi professor num curso médio, muito acima da sua cultura. E, finalmente, regressou a Portugal, após ser vítima, como todos os portugueses, das nacionalizações, residindo actualmente na cidade universitária namorada do Mondego. Mas nas prisões de Moçambique ficaram algumas das suas vítimas. (…)
A resposta ao apelo de Mário Ferro [também jornalista português] não se fez esperar, e, por ordens, da Frelimo, é detido poucos dias depois um agricultor [português residente na Angónia, província de Tete] de nome António Ferreira Abreu. Transportado sob prisão para Lourenço Marques foi ali enclausurado em regime incomunicável. Sua mulher e filha – uma criança doente – sofreram igual sorte. A solução chegou para todos com a expulsão de Moçambique, após haverem sofrido as mais desumanas humilhações e maus tratos. A acusação baseou-se em “crime de sabotagem económica”, mas o acusado não foi julgado em nenhum tribunal. (…)
Prosseguindo o programa de Mário Ferro, algum tempo decorrido é encarcerada a totalidade dos agricultores portugueses [da Angónia] e a maioria dos comerciantes, nestes incluindo cinco moçambicanos. (…)
Caminhando devagar, cruzei-me [nas ruas da cidade da Beira] com grupos de soldados de Portugal que haviam enfeitado as suas armas com cravos rubros, numa grosseira imitação das fotografias publicadas nos jornais reportando o 25 de Abril português, e que levantavam a mão direita em gesto grotesco, colocando dois dedos em símbolo de vitória. Para estes sorri. E acenei com ambas as mãos. E quase gritei: Eles eram as maiores vítimas de Lusaka. O sangue dos seus camaradas, que pintaram de honra o sertão e levantaram monumentos de bravura nas picadas mais remotas, havia sido traído pelos seus chefes numa cidade estranha de um país mais estranho. (…)
Estavam ali, também, os “progressistas”, homens e mulheres que se queriam apresentar como demolidores da velha sociedade, e que se juntavam aos oportunistas (…).
O ódio fervilhava nos gatilhos das armas automáticas e as cenas da mais desumana bestialidade iam-se registando nos bairros limítrofes da capital e em todas as artérias do seu acesso. (…) Recordo com raiva o relato de um homem: Sua mulher, licenciada em Farmácia, exercia a sua profissão na Matola, regressando a casa, em Lourenço Marques, todos os dias ao fim da tarde. Temerosa pelos relatos de atrocidades, que ouvira de gente assustada, decidiu regressar mais cedo, telefonando primeiramente ao marido a dar conta da sua resolução. O marido, também temeroso, foi ao seu encontro, a tempo de ouvir os gritos lancinantes da mulher dentro do automóvel em chamas, cercado por centenas de assassinos que gozavam o espectáculo em diabólica orgia. Ele fugiu levando nos ouvidos como música do mais trágico drama os últimos gritos de desespero e morte da mulher incinerada viva.
Ela fora apenas uma portuguesa entre centenas, entre milhares de vítimas – o número nunca foi divulgado pela imprensa moçambicana – sacrificadas como ela. Ela fora uma das colonizadoras, uma das fascistas, um dos monstros a destruir, que a imprensa comunista fabricava diariamente nas suas edições dirigidas por portugueses traidores, por virtuosos intelectuais ultra-revolucionários.
Lembro, também, a descrição de um homem que perdeu toda a família: Estava em Lourenço Marques e, mal tomou conhecimento das trágicas ocorrências, dirigiu-se para a sua casa nos subúrbios, pedindo protecção a uma força militar portuguesa, que o escoltou até à residência. Todas as portas estavam arrombadas. Junto à escada de acesso jazia a sua filha, de catorze anos, numa poça de sangue, degolada e com os membros decepados. Tinha sido violentada antes de morrer. Nos compartimentos interiores espalhavam-se os corpos de seus irmãos e tios, vítimas das mais desumanas mutilações. (…)
Que importavam as afirmações de testemunhas oculares, de sobreviventes, que viram homens, armados e fardados com camuflados da Frelimo, assassinando pessoas indefesas e saqueando residências, embriagados no mesmo álcool sanguinário? Que importava – ou continua a importar tudo isto – se os comunicados oficiais e os artigos de Fernando [Leite] Couto e de seu filho Fernando Amado Couto [pai e irmão de Mia Couto, também jornalista], dois jornalistas portugueses apregoadores das virtudes frelimistas e dos dons de líder de Samora Moisés Machel, afirmaram não ser verdade, nas páginas do “Notícias” [de Lourenço Marques/Maputo]? Não se passara nada de anormal em Moçambique? Mas nada, absolutamente nada. (…)
Um dos indivíduos que mais vezes me mandava calar era o dr. B., um advogado. Homem idoso, honesto. Reside em Moçambique há mais de trinta anos e não possui fortuna nem economias. Aderiu à primeira hora à Frelimo (…). Foi saneado por informação de uma jovem professora primária, inexperiente, mas frelimista, presente sempre à abertura de latrinas e às machambas do povo, com a sua enxada oportunista que a levou, de um dia para o outro, de incompetente professora recém-saída do Magistério a inspectora provincial dos Serviços de Educação e membro influente do Departamento de Educação e Cultura. O seu nome interessa para quando for feita a biografia dos traidores de Portugal – é portuguesa, e cruzará, qualquer dia, contigo em Lisboa. Trata-se de Fernanda La Salette Teixeira.»